"Leitor, eu me casei
com ele.” A frase que abre o último capítulo de “Jane Eyre” é uma das mais
marcantes da Literatura. Mas até chegar ao final feliz, a protagonista passa
por muitos percalços.
Autobiografia fictícia da jovem Jane Eyre, Charlotte Brontë
escreveu o romance em 1847, inspirada na literatura gótica e em sua própria
vida. Mesmo que alguns críticos o considerem uma obra romântica, “Jane Eyre” vai na contramão desse estilo literário, ao inserir uma protagonista sem
atrativos físicos – à certa altura, ela se define como “pobre, obscura, feiosa
e baixinha” – em busca de independência e felicidade, na puritana Inglaterra
vitoriana. Vale lembrar, ser uma mulher independente, naquela época, era um privilégio difícil de obter, mas não impossível. Mulheres com boa escolaridade tinham oportunidades de trabalho, restrito, claro, mas mesmo assim, numa sociedade cujo papel principal era ser boa esposa e mãe, algumas conseguiam atingir uma certa autonomia de vida.
É sabido que Brontë não gostava da obra de outro ícone da Literatura
Inglesa, Jane Austen. Segundo Charlotte, as personagens femininas de Austen
eram, em outras palavras, fúteis, que viam o casamento como único meio de
ascensão social. Jane Eyre, portanto, seria o oposto de Elizabeth Bennet
(protagonista de “Orgulho e Preconceito”); sem família, tem somente a si
mesma para zelar por sua dignidade. Sua noção do que é certo e errado, sua
firmeza de caráter, se revela desde os primeiros capítulos, que descrevem sua
infância cheia de adversidades. Órfã, criada pela família de seu tio, é tratada
de forma cruel por sua tia, sra. Reed, que a envia para um colégio interno,
Lowood, administrada por um certo Sr. Brocklehurst. Este último é um exemplo de
hipocrisia; seu discurso no colégio, sobre a educação das meninas, bate de
frente com o que se vê em sua própria família: enquanto ele manda cortar os
cachos naturais de uma aluna, por ser, na opinião dele, “algo tão mundano”, sua
esposa e suas filhas ostentam sedas e peles, e cabelos em cachos... Claro que, sendo um romance romântico, todo mal se paga, e o Sr. Brocklehurst recebe sua cota: depois de uma tragédia, tiram-lhe o controle do colégio, tornando-se apenas uma figura de enfeite. Sorte de Jane, que vive oito anos ali, repletos de tranquilidade, recebendo uma excelente educação.
Passada a história de sua infância, chegamos à Mansão
Thornfield. Jane se dirige até lá para ser preceptora de Adèle, uma francesinha
de dez anos, protegida de um tal Sr. Rochester. Não vemos este homem de
imediato, pois o mesmo se encontra em viagem. Só o conheceremos ao mesmo tempo
que Jane, num fim de tarde em meio à uma floresta lúgubre. A partir daí, vemos
Jane, na flor dos dezoito anos, com um coração virgem de sentimentos, despertar
para o Amor – ela se apaixona pelo patrão, que é vinte anos mais velho. Mas, imaginando que essa paixão era
inteiramente platônica, ela se contenta em apenas aproveitar os momentos em que
se senta diante de Rochester, à noite, frente a uma lareira na sala de visitas. O tête-à-tête entre os dois chega a ser
cômico em alguns momentos, mas é durante essas conversas que a inteligência de
Jane aflora, mantendo-a em pé de igualdade com o irascível sr. Rochester, um
homem misterioso, politicamente incorreto, sarcástico e de ações dúbias.
- Não tenho pais.
- E imagino que nunca teve. Tem alguma lembrança deles?
- Não.
- Achei que não. Então, (...), você estava esperando pelos seus?
- Por quem, senhor?
- Os homenzinhos verdes. Era uma noite de lua, perfeita para eles. Por acaso eu invadi algum círculo (...)?
Balancei a cabeça.
- Os homenzinhos verdes foram embora da Inglaterra há centenas de anos – falei, com toda a seriedade – E nem mesmo na estradinha de Hay, ou nos campos em torno, é possível encontrar seus rastros. Não creio que nem no verão, ou no tempo da colheita, ou nas noites de lua no inverno, seja possível testemunhar seus festins.”
Charlotte descreve Rochester como “moreno, com feições duras
e sobrancelhas espessas”, de “altura mediana e peito largo” – ou seja,
totalmente avesso da perfeição clássica do heroi romântico. Aliás, essa
contramão é característica da família Brontë, já que a irmã de Charlotte,
Emily, autora de “O Morro dos Ventos Uivantes”, descreve seu Heathcliff na
mesma linha de pensamento, diferente dos padrões românticos – muito embora suas
personalidades rezem na cartilha do Romantismo. Inclusive, há pontos em comum
entre esses dois personagens: são passionais e atormentados, mas por motivos
bem diferentes. Heathcliff é violento em seu amor por Cathy, atormentado por
sua lembrança, e infeliz, procura tornar infelizes a todos ao seu redor;
Rochester é elegante em seus gestos, porém com um gênio terrível e dono de um
humor sarcástico cujo alvo preferido é a sociedade à qual pertence, que ele
culpa devido a fatos ocorridos no passado (e que faz questão de esconder num
quarto escondido na mansão). Vemos isso claramente quando ele recebe um grupo de amigos, dentre as quais se destaca a Srta. Ingram. Fica quase que imediatamente claro para o leitor que todas as cenas do cortejo de Rochester àquela jovem têm algo que não se encaixa; mas Jane não enxerga isso logo de cara - mesmo que em alguns momentos seu senhor demonstre dar uma atenção, digamos, "pouco comum" entre patrão e empregada.
Rochester é impetuoso e procura sempre confundir a todos, como bem mostra
a cena da cigana, e é tão bem sucedido nisso que, quando resolve se declarar
para Jane e pedi-la em casamento, esta simplesmente não lhe dá crédito! É uma
das melhores passagens do romance, sem dúvida: Jane acredita que seu patrão
ficará noivo de outra mulher e, não conseguindo se conter, despeja toda a sua
dor para Rochester. Ele, após ouvir tão apaixonada declaração, também decide
abrir seu coração, entretanto, Jane só acredita no amor de seu patrão quando
este perde a paciência diante de seu ceticismo!
" - É por vontade própria que você decidirá
seu destino - disse ele. - Eu lhe ofereço meu coração, minha mão e a metade de
todas as minhas posses.
- Isso é uma farsa, a qual só pode me fazer rir!
(...)
- Venha, Jane... Venha aqui.- Sua noiva está entre nós.
Ele se ergueu e, dando um passo à frente, me alcançou.
- Minha noiva está aqui - disse, puxando-me para si - porque aqui está
minha igual, minha alma gêmea. Jane, você quer se casar comigo?(...)
- Duvida de mim, Jane?
- Completamente.
- Não acredita em mim?
- Em absoluto.
- Sou então, para você, um mentiroso? - perguntou, num tom passional. - Minha
pequena cética, você acabará por se convencer. (...) Eu não iria, não poderia
me casar com a srta. Ingram. A você, essa pessoa estranha, quase extraterrena!,
a você sim, eu amo mais do que a mim mesmo. E é a você, mesmo pobre e obscura,
feiosa e baixinha, que peço que me aceite como seu marido!
(...)
- Está falando sério? É verdade que me ama? Que
quer sinceramente que eu seja sua esposa?
- Sim. E, se for necessário um juramento, eu juro.
- Então eu me casarei com
o senhor."
O que chama muito a atenção no livro de Charlotte são as
reviravoltas. É em meio a elas que Jane mostra o quão forte é, o quanto
respeita a si mesma e é firme em suas convicções. Num momento crucial do
romance (que, obviamente, não será descrito aqui), Jane se encontra dividida
entre seu amor por Rochester e suas próprias crenças. O desejo – ah, o desejo! –
tenta sobrepujar-se à razão, mas Jane é tão fiel no que acredita ser certo, que
resolve fugir da tentação. Literalmente. Serão três dias caminhando a esmo, sem
dinheiro, com fome e sede, até ser encontrada pela família Rivers, chefiada por
St. John.
St. John, pastor de uma humilde igreja, é um homem com uma
beleza clássica típica dos romances românticos (“alto, bonito, de olhos azuis e
com um perfil grego”, descreve Charlotte) e dono de uma força de vontade
incrível, porém, o que poderia ser uma grande qualidade se torna um defeito em
sua pessoa. Ele simplesmente refuta qualquer sentimento, principalmente o Amor,
por achar que ele desvirtua sua vocação religiosa. Ele é completamente o oposto
de Rochester! Num primeiro momento Jane, por gratidão, se submete às vontades
do rapaz, apesar de achá-lo um insensível. Entretanto, sua personalidade forte
aflora quando o pastor lhe faz uma inusitada proposta. Mas será devido a essa
situação – que chega a ser constrangedora, pelo menos para mim – que levará
Jane de volta a Rochester, numa das cenas mais emocionantes que a Literatura é
capaz de proporcionar.
Enfim, à primeira vista, um romance autobiográfico ficcional
corre o risco de cair na armadilha da previsibilidade e da pieguice;
entretanto, “Jane Eyre” é um jogo de luz e sombra onde a moralidade e o vício
são suas representantes mais significativas. Da rudeza aristocrática de Mrs.
Reed, passando da hipocrisia de Mr. Brocklehurst até o amor sublime ao mesmo
tempo que pecaminoso (até certo ponto) de Mr. Rochester, o livro de Brontë
pincela em tons claros e escuros um ambiente que poderia muito bem ser
retratado numa tela de autoria da protagonista. Não que Jane seja um poço de
virtude: ela mesma reconhece, a certa altura, que não é perfeita. Porém, é na
imperfeição que está sua beleza – uma lição que Charlotte Brontë ensina há
exatos 165 anos, e que todo leitor aprende ao folhear sua obra máxima. Boa
Leitura!
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