No filme “V de Vingança”, baseado nos quadrinhos de Alan Moore,
a sociedade ali retratada vive sob o domínio de um governo tirânico que, em
nome da “moral”, diz o que deve ser lido, assistido, informado e até a quem se
deve amar. O protagonista, um homem mascarado de codinome V, antes de praticar
uma série de atentados contra o governo ditatorial, leva uma jovem, Evie, até
uma galeria subterrânea onde estão inúmeras obras de arte, esculturas,
pinturas, vinis, filmes e livros que escaparam de serem incineradas pela
censura do governo. Lá, empilhadas, está toda a cultura do mundo, que não pode
ser usufruída pela população por conter ideias “obscenas”, “subversivas” e “imorais”.
Saindo um pouco da ficção e entrando na realidade, a
História está pontuada de casos semelhantes: a Inquisição, o Nazismo e o
Comunismo já construíram fogueiras para destruir obras de arte que acreditavam
ser “impróprias” para o público que subjugavam. Artistas foram presos,
torturados e mortos devido ao que faziam. Ainda hoje há objetos de valores
inestimáveis desaparecidos. No Brasil, até onde se sabe, nunca se queimou nada;
entretanto, principalmente durante a ditadura militar, músicos, escritores e
jornalistas sofreram com a censura imposta pelo governo. Quase todos foram
exilados. E, passados mais de vinte e cinco anos do fim do governo dos
generais, o fantasma da censura volta a assombrar, e agora o seu alvo é um dos
autores mais queridos da Literatura Infantil brasileira.
Monteiro Lobato criou o Sítio do Pica Pau Amarelo durante a
Primeira República, quando o Brasil ainda construía uma imagem desvinculada da
de Dom Pedro II. Ambientada na zona rural, conta as aventuras dos netos de Dona
Benta, Pedrinho e Narizinho, no sítio em questão, sempre acompanhados da boneca
falante Emília e o sabugo de milho ambulante e muito sábio Visconde De
Sabugosa. “Caçadas de Pedrinho”,
publicado em 1933, tem como principal ação as peripécias das crianças atrás de
uma onça-pintada. Até aí, nada demais. O problema é que, segundo o Instituto de
Advocacia Racial (IARA), a obra de Monteiro Lobato é “racista”, devido a
personagem Tia Nastácia (que na história é empregada de Dona Benta). E sob tal
alegação, o IARA entrou com uma petição no Supremo Tribunal Federal (STF)
pedindo que a obra de Lobato seja banida das escolas.
Tal discussão parece tão inacreditável quanto a lenda da
Iara; observando-se o contexto histórico da obra (década de 1930), não é
difícil averiguar que, àquela época, a população negra ainda lutava por seus
direitos, e claro, contra os preconceitos de uma sociedade que não fazia muito
tempo, os oprimia. É impossível para qualquer escritor não se valer da
realidade para escrever seus romances, pois o papel da Literatura é justamente
esse, ser o retrato de uma época, de um povo, de seus costumes, de seus erros e
de seus acertos. Dizer que a obra de Lobato é racista é negar a luta dos negros
por igualdade num período em que a “liberdade” era restrita. Pedir que a obra
seja banida porque “não há como se alegar liberdade de expressão em relação
ao tema quando da leitura se faz referências ao negro com estereótipos
fortemente carregados de elementos racistas” soa a hipocrisia. Cabe aos
professores fazer a distinção entre o passado e o presente, é para isso que
existe a escola.
Em síntese, impedir que
crianças tenham acesso a um autor clássico como Monteiro Lobato é menosprezar a
inteligência e restringir o imaginário delas. Banir “Caçadas de Pedrinho” da
rede pública de ensino é uma ação por si só preconceituosa, e abre caminho para
que outras obras literárias também sejam banidas pelos mesmos, ou outros,
motivos. Não vai demorar muito para Alan Moore e sua galeria subterrânea se
tornarem obsoletos, dando espaço para George Orwell e seu Grande Irmão. Só
resta finalizar com o seguinte pensamento: a malícia, realmente, é inimiga do
discernimento – e quem sai perdendo com isso é a população.
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