Amor, traição,
casamento, tensão sexual, dinheiro... Eis os ingredientes da obra que, na minha
opinião, é a mais completa do romance romântico brasileiro. Tinha que ser o
José de Alencar mesmo!
Capa do livro, Editora FTD. |
Conta a
boca miúda que, muitos anos atrás, num programa de auditório qualquer, o
apresentador perguntou à plateia que personagem literária tinha “olhos de
ressaca”; ninguém soube dizer. Porém, quando perguntou quem era “a virgem dos
lábios de mel”, os presentes responderam em uníssono: “Iracema”. Tal é a força
de José de Alencar, de longe o maior autor da fase romântica da Literatura
Brasileira.
E talvez o mais popular até hoje, superando Machado de Assis, ícone
do Realismo e criador de Capitu, a dos “olhos de ressaca” – os dois, aliás,
eram muito amigos. Não sei se sabem, mas, ao contrário do que possa parecer nos
livros didáticos, quase todas as fases literárias eram contemporâneas, e não
raro dá para notar um sopro de uma no meio da outra – na minha opinião,
“Senhora” é um exemplo disso. Calma, explicarei mais adiante.
José de
Alencar era um polemizador, e não raro suas críticas batiam de frente com os
interesses da elite da época. Seus romances, os urbanos principalmente, eram o
canal onde o autor cutucava certas feridas – como em “Lucíola” – sem contar os
inúmeros artigos de jornal, sob pseudônimos (e tanto ele fez que conseguiu
exasperar até o imperador Dom Pedro II, tido como um homem bem tranquilo). Em
“Senhora”, o tema era o casamento arranjado, prática comum na sociedade
brasileira daquele tempo (se bem que vemos isso até hoje, basta observar...),
onde tudo era realizado como num negócio qualquer. Dificilmente você via um
tema tão espinhoso nos romances românticos brasileiros. Nas mãos de Machado de
Assis, ou de outro autor realista, a ótica seria diferente e talvez até óbvia,
mas nas mãos de um autor do Romantismo, o tema parece um estranho no ninho. Mas
estamos falando de Alencar! Seus romances sempre têm como mola propulsora o
dinheiro, mas em “Senhora”, ele não é o meio que desencadeia os acontecimentos:
ele FAZ PARTE de tudo, é tão protagonista quanto Aurélia e Fernando. É a obra
romântica mais realista de Alencar, pois expõe o comércio do casamento como
exatamente é: um comércio, uma bolsa de valores matrimonial, com uma mocinha
ambígua que inventa de dar uma cotação aos seus pretendentes, como se eles
fossem o dólar e o euro (ou a libra esterlina, a moeda estrangeira da época).
O autor, José de Alencar. |
O próprio romance é dividido em
quatro partes, nomeadas de acordo com as fases de um contrato comercial: de um
lado, Fernando Seixas, um homem elegante, bem relacionado, mas que por conta de
sua vida de luxos está afundado em dívidas; do outro, Lemos, tutor de uma moça
rica que precisa casar logo para “não cair na lábia dos farejadores de dote”.
Detalhe: Fernando JÁ É NOIVO de outra moça rica. Mesmo sabendo disso, Lemos,
ciente da situação do rapaz, joga a isca já imaginando o resultado: o dote de
sua protegida é de cem contos de réis, uma verdadeira fortuna, maior do que o
da atual noiva do futuro “contratado”. Seixas, mesmo hesitando, não aceita de
imediato, entretanto, volta atrás quando se dá conta de que o dote de Adelaide,
sua noiva, não será suficiente para cobrir suas dívidas e manter sua vida de
casado. Neste ponto, dá para reconhecer um toque do Realismo no romance
romântico de Alencar: Fernando é um homem que põe a aparência acima de tudo,
não se importando em romper compromissos que lhe pareçam desfavoráveis. Ele tem
consciência de que está se vendendo, mas contanto que possa viver como está
acostumado, felicidade conjugal é o de menos. Até aí tudo bem – mas ao conhecer
a futura esposa...
“Oh, que
dia lindo, me sinto contente”, hein? A nova fiancée
é ninguém mais, ninguém menos que Aurélia Camargo, “nova estrela que raiou no
céu fluminense” (eufemismo alencariano para “nova rica”, diga-se de passagem), a
moça é uma espécie de it-girl da
elite carioca do século XIX – e grande amor do passado de Fernando Seixas. Tamanha
“coincidência” leva o rapaz ao Paraíso... Mal sabe ele que todos os sorrisos e
atenções de Aurélia escondem uma mulher ferida que articulou todo o processo de
compra de sua liberdade. Dá para notar pelo estilo do autor que as ousadias a
que a moça se presta, mesmo que na surdina, eram uma espécie de “justiça”
contra aqueles que faziam do casamento um comércio lucrativo. Na juventude,
Alencar apaixonou-se por uma jovem que o desprezou para casar-se com um homem
de posses. Os sentimentos de Aurélia, no meu entender, seriam um reflexo dos do
jovem e desprezado Alencar. Fernando mal consegue apreender os acontecimentos da
que seria sua noite de núpcias; Aurélia lhe revela toda a verdade do noivado e
arremata: ela é uma mulher traída, e ele, um homem vendido.
“– Vendido!
– Vendido sim, não há
outro nome.”
É outro sopro do Realismo na obra
romântica: Fernando se sente ofendido com a acusação de Aurélia, sendo que ele
próprio tinha consciência de sua situação. É uma hipocrisia da parte dele; mas
uma coisa é ter consciência do que o que faz não é certo, outra completamente
diferente é alguém de fora lhe dizer o mesmo. Aurélia é a mulher ultrajada que
não mediu esforços para devolver na mesma moeda a traição de que foi vítima,
calculando cada ação com certa frieza e envolvendo todos ao seu redor, do seu
tio e tutor Lemos ao melhor amigo, doutor Torquato Ribeiro. Usou de chantagem
para com o primeiro, através de uma carta que este lhe enviou propondo-lhe
coisas absurdas quando ela ainda era pobre; quanto ao segundo, aproveitou-se da
paixão deste por Adelaide, a ex-noiva de Fernando. Seu triunfo é pôr o marido
em seu devido lugar, de simples mercadoria de um comércio lucrativo. Humilhação
para Fernando, que deve manter as aparências diante de todos, mas que não
consegue esconder sua condição dos mais perspicazes, como Lísia Soares, numa
conversa meio que indiscreta sobre o valor do dote.
Sendo Aurélia uma mulher
independente e mandante da situação, tão diferente das outras de sua época, é
claro que Alencar não correria o risco de ver sua protagonista ganhar a antipatia
dos leitores, na maioria conservadores. Como o romance foi publicado
primeiramente em folhetins, vejamos: por quase todo o romance, vemos a esposa
submetendo o marido a situações no mínimo constrangedoras – imagina a cena!
Para justificá-la, o autor abre antes um parêntese na história e volta dois
anos no tempo para dar a conhecer ao público os motivos de Aurélia. Ficamos
sabendo então de seu passado pobre, a perda do pai e do irmão, a submissão aos
desejos da mãe de fazer um bom casamento, até conhecer Fernando, que, mesmo
apaixonado, a abandona para ser noivo de Adelaide, a moça que, apesar de não
ser muito rica, pode mantê-lo na sociedade chique de então. Aurélia desconhece
os motivos de Fernando em deixá-la – ela acredita que o rapaz se apaixonou por outra
– e é aí nesse momento que percebemos a mão de Lemos em toda essa história.
Lemos sempre acreditou que sua
irmã Emília, mãe de Aurélia, era amante de Pedro Camargo (portanto, uma mulher
da vida) e, querendo aliciar a filha dela, ele, na surdina, envolve Fernando
através do pai de Adelaide para que o moço abandone a namorada; depois envia à
sobrinha uma carta anônima, dizendo o verdadeiro motivo do noivado do rapaz,
causando-lhe um grande desgosto. Mas seus planos de fazer de Aurélia uma
mercadoria (vocês entenderam, não é?) vão por água abaixo com a chegada de
Lourenço Camargo, pai de Pedro e, portanto, avô da protagonista. Ele reconhece
o casamento legítimo do filho com a nora, se afeiçoa à neta, e com sua morte, a
torna sua universal herdeira. Aurélia fica milionária, e ao descobrir isso,
Lemos arranja um modo de se tornar seu tutor (e administrador do dinheiro,
claro). Entretanto, ele não contava com a esperteza de Aurélia: de posse das
missivas de Lemos, ela o chantageia para conseguir o que quer: ser dona de si
(e do dinheiro, claro), morar em casa própria e longe dos parentes maternos. É
o castigo de Lemos: com o olho maior que a barriga, acabou ficando com fome –
pois Aurélia o mantém longe de seu círculo e de seu dinheiro. Devemos entender
então, que o tio é a primeira vítima da vingança de Aurélia. Depois,
obviamente, é a vez de Fernando... porém, o que ela não imagina é que o rapaz
já está arrependido do compromisso com Adelaide e, mais para fazer a noiva
perder a paciência do que por gosto, viaja a trabalho para Pernambuco, voltando
ao Rio dois anos depois.
Com o público já convencido de
que Fernando MERECE cada humilhação que Aurélia o faz passar, Alencar retoma a
história do ponto onde parou, agora favorecendo o rapaz – é a partir daí que as
características românticas do autor florescem ainda mais: Fernando Seixas,
antes um manganão perdulário, se torna um homem de responsabilidades (se
Machado fosse o autor, provavelmente Fernando teria chutado o balde...)! E o
Amor que o casal sente um pelo outro acha brechas, criando momentos de ternura,
ciúme e sensualidade, como na cena da valsa: sempre que leio a cena posterior,
a do desmaio (imaginem, ela desmaia de emoção depois que o marido lhe dá um
mero SELINHO), a sensação que tenho é que, se não fossem as malditas batidas na
porta, Fernando e Aurélia teriam transado ali mesmo, no divã – podem pegar o
livro e conferir: quando Alencar escreve que Aurélia sentiu “uma vibração
íntima” e Fernando “queria ousar”, a tensão sexual é tão visível que até se pode
afirmar que a cena é a mais perfeita descrição de tesão na literatura
brasileira.
Maaaaaaaaaaas não é assim que a
coisa funciona para Alencar: o amor carnal não pode se comparar ao Verdadeiro
Amor. É por isso que o casamento só se consuma quando Fernando se redime
completamente, já no último capítulo. Ele devolve o dote à Aurélia, na intenção
de se separar. Porém, a moça se ajoelha aos seus pés, já convencida de que o
homem que ama corresponde aos seus sentimentos e ambos se beijam
apaixonadamente. Fernando chega a afastá-la, dizendo que o dinheiro os separou
e Aurélia, como resposta, lhe entrega o seu testamento, onde o declara seu
herdeiro. Nesse ponto o leitor entende porque a moça se identifica tanto com as
heroínas trágicas de Shakespeare: ela passou o livro inteiro achando que
morreria de amor... No entanto, ela não morre, nem o casal se separa: ficam
juntos, unidos, felizes, usufruindo dos prazeres do “santo amor conjugal”
(vocês entenderam, não é?)...
Sim, minha gente. José de Alencar
era uma personalidade polêmica, teimosa e de língua ferina, mas acima de tudo,
um otimista. Um senhor otimista, esse filho de padre!
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