sábado, 7 de dezembro de 2013

TODA FORMA DE AMOR – Sobre o filme “Secretária”.

O romance entre Lee Holloway e o senhor E. Edward Grey mostra que cada pessoa ama do jeito que lhe parece certo, nesta história recheada de simbolismos. Como resistir ao: “Miss Holloway, come into my office...”?




A primeira vez que assisti a “Secretária”, há alguns anos, o que mais me chamou a atenção, além do óbvio, foi a presença constante da água. Para quem não sabe, na Simbologia, água significa pureza ou purificação, e num filme como este, tal elemento serve, até a certa altura, como contraponto para a personalidade dos protagonistas: ambos reprimidos em seus sentimentos, que procuram se adequar às regras da sociedade e, ao mesmo tempo, dar vazão aos seus desejos. Aliás, este é o tema do enredo: desejo. Desejo de autodominar-se, de dominar e ser dominado.

E. Edw...Quer dizer, SENHOR E. Edward Grey e Lee Holloway, os protagonistas.

Sim, meus amigos, este filme de 2002, premiado no Festival de Sundance – famoso por promover filmes independentes – e que tive a chance de assistir outra vez, tem como mote o sadomasoquismo. Entretanto, diferente do que se vê por aí nos dias atuais, o assunto é tratado de forma mais positiva, como algo que faz parte da personalidade dos personagens e não um problema a ser superado; o que vemos aqui são duas pessoas que se apaixonam, mas demoram a admitir isso por tentarem se adequar ao que a sociedade impõe como “normal”. Começando do princípio, vemos Lee Holloway, a protagonista, saindo de um hospital psiquiátrico – ou seja, ela já não é mais reconhecida como “normal”. Com um pai alcóolotra e uma mãe condescendente, Lee, divinamente interpretada por Maggie Gyllenhaall, passou a se automutilar: toda vez que se frustra com algo ou precisa extravasar seu sofrimento interior, ela pega uma tesourinha e faz pequenos cortes em partes menos visíveis do corpo. Contudo, um dia ela se cortou demais e quase morreu, o que levou a sua família a interná-la numa instituição. Ao receber alta, Lee volta a se machucar, e tentando desesperadamente sair desse círculo vicioso, faz um curso de secretariado e datilografia a fim de encontrar um emprego e se ocupar, fugindo do ambiente que tanto a frustra. Respondendo a um anúncio de jornal, ela vai atrás da vaga de secretária do escritório de um certo advogado chamado E. Edward Grey, interpretado pelo maravilhoso James Spader.

Um trabalho como qualquer outro - mas só no início!
                   
Nota-se que há algo estranho no local mesmo antes de Lee passar pela soleira da porta; abaixo da placa de identificação do escritório há outra, iluminada por lâmpadas, onde se lê “Secretary wanted” (“Precisa-se de secretária”), o que indica que ali SEMPRE tem vaga... Quando Lee entra, o lugar está totalmente REVIRADO, e uma mulher sai às pressas, chorando; acaba de ser demitida. Sem entender o que se passa, e nem nós, Lee encontra o advogado completamente sozinho e visivelmente abalado. Neste ponto eu preciso falar: James Spader, logo nos primeiros minutos em cena, através de pequenos gestos, expressões e principalmente voz, nos dá a dimensão do desamparo em que o personagem se encontra quando o vimos pela primeira vez: quando Lee faz menção de ir embora, o tom de súplica contida na voz do advogado ao pedir que ela fique nos desperta a compaixão e ao mesmo tempo a curiosidade. A entrevista é recheada de perguntas esquisitas (“Você está grávida? Planeja engravidar?”), e só pelo fato de Lee não ter experiência nenhuma já seria motivo para dispensá-la, mas Grey, ou melhor, SENHOR Grey, nota em Lee algumas características, além da blusa molhada, que o estimulam a querer conhecê-la melhor (“Há alguma coisa em você... Você é extremamente fechada, um muro.”) e a contrata.

                                  
O Amor que nasce num simples toque de mãos... depois de uns tapas!
                        
De início, é um trabalho normal como qualquer outro, mas a partir do momento em que o Sr. Grey, de longe, observa Lee na lavanderia conversando com um ex-colega de colégio, Peter, a história muda de tom, representada pela presença de marcadores vermelhos (a cor símbolo do fetiche). Seriam ciúmes? Acredito que não, pelo menos não de início. A impressão que dá é que o Sr. Grey não aprovou a relação de Lee e Peter. O rapaz é sem graça, insosso, apesar de socialmente aceitável. Em outras palavras, Peter é certinho demais para Lee e nunca a ajudaria a superar seus problemas. A essa altura, Sr. Grey já sabe que sua secretária se automutila e, ao mesmo tempo que a humilha pelos erros de datilografia (e a repreende duramente pela sua maneira de vestir, o jeito de falar, a mania de fungar e bater os pés, enrolar o cabelo com os dedos e pôr a língua para fora enquanto datilografa documentos), ele a ampara e aconselha, exigindo suavemente que Lee pare de se cortar (e o que ela faz? Obedece, afinal, a jovem já está completamente encantada pelo chefe!). E apesar dela se esforçar ao máximo para auxiliá-lo, chega o momento em que a verdadeira natureza do Sr. Grey vem à tona – sozinhos no escritório, ele a faz curvar-se sobre a mesa e a manda ler em voz alta uma carta com erros de datilografia. Quando Lee começa a declamar, o Sr. Grey se aproxima e... dá uns tapas com toda a força nas nádegas de sua secretária. Pensam que ela se abala? Que nada! Ela simplesmente substitui um hábito (o de se cortar) por outro (o de ser submetida), encontrando finalmente o seu papel, descobrindo sua feminilidade e sexualidade através das ordens – e dos tapas – do Sr. Grey. É só prestar atenção no final da cena, quando as mãos de ambos se tocam terna e sensualmente: a partir dali vemos o quanto um completa o outro e vice-versa. Entretanto, para o advogado, é um aspecto de sua personalidade que o deixa profundamente desgostoso consigo mesmo, e ao afastar Lee, ele tenta retomar o controle de seus sentimentos com muito, mas MUITO esforço, pois sua vontade de querer fazer algo a ela e com ela é tremendamente forte, quase irresistível. Já a secretária, querendo ardentemente ser submetida outra vez, provoca-o até levá-lo ao limite, culminando na cena onde ele perde o autodomínio e libera todo o desejo que sente por ela, mas que no fim o deixa totalmente transtornado.

"Miss Holloway, come into my office."
"Senhorita Holloway, venha até a minha sala."
"We can't do this 24 hours a day, 7 days a week."
"Não podemos fazer isso 24 horas por dia, 7 dias por semana."
                                                               
Sr. Grey e Lee: um Amor que parece certo para ambos.
                            
No início deste texto eu mencionei a presença constante da água. Seja na piscina da casa dos pais de Lee, num rio, ou a chuva, a água, como já dito, representa a pureza, assim como o jardim que o Sr. Grey cultiva com todo cuidado no escritório. Um retorno ao princípio de tudo, antes de qualquer consciência; um Jardim do Éden onde a noção de certo e errado não existia. Por que é tão difícil aceitar que existem várias formas de amar? Lee não demora muito para perceber que ama o Sr. Grey do jeito que é, apesar do que ele pensa. “Não podemos fazer isso 24 horas por dia, 7 dias por semana.”, afirma o advogado, “Por que não?”, ela retruca. É mais do que uma declaração, é uma carta de alforria que ela lhe oferece: eu te amo assim, eu te aceito assim, assim como você disse que eu era livre, eu digo que você também o é. Óbvio que o Sr. Grey não admite o que verdadeiramente sente de imediato – ele leva três longos dias pra isso. Três dias sofrendo, lendo sobre Lee nos jornais, mal dormindo, com o pensamento totalmente voltado para ela, até voltar ao escritório onde a deixou sozinha. E na cena em que Grey surge finalmente disposto a viver o amor que funciona para ambos, novamente a água surge, para purificar a relação dos dois. É praticamente um ritual, onde finalmente Grey quebra o muro que Lee construiu ao seu redor, representado pelas cicatrizes que cobrem o corpo dela e que ele beija uma por uma, numa cena delicada, amorosa e erótica. Amar, enfim, não escolhe um único meio para se concretizar, basta todos nós aceitarmos que toda forma de Amor é justa, desde que o casal esteja de acordo – Lee e Edward, por exemplo, ao assumirem o que sentem um pelo outro, NÃO excluem o sadomasoquismo da relação nem depois de casados, pois isso é o alicerce de sua vida em comum. Prova disso é a barata morta lançada por Lee em cima da cama impecavelmente arrumada, depois de receber o beijo apaixonado de um Edward realizado e feliz... Afinal, entre o dominador e a submissa, quem detém o maior poder é quem se submete. E o olhar que ela lança para a câmera (ao espectador) é desafiador. Os preconceituosos desviarão daquele olhar, mas os que não são simplesmente aplaudirão. E de pé.

Cumplicidade e aceitação: um casal realizado e feliz.
Com um tempero a mais!
                            
P.S.: Obrigada, minha amiga Ionara Ferreira, por me dar o DVD “Secretária” de presente! :3

P.S.²: Vou continuar com o Festival James Spader. O último da minha lista é “sexo, mentiras e videotape”.

Um comentário:

  1. "Amar, enfim, não escolhe um único meio para se concretizar, basta todos nós aceitarmos que toda forma de Amor é justa, desde que o casal esteja de acordo" . Caramba, vc escreve maravilhas. Tem mais? (análise sobre filmes).

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