quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

UMA MUDANÇA DE PERSPECTIVA – Sobre o filme “sexo, mentiras, e videotape”.

Nada resume melhor este filme do que seu título, recheado de questionamentos e suposições. Mas quando o assunto é sexo, nunca se fala o suficiente.




Sexo é bom, disso ninguém duvida. Então por que o tema é ainda um tabu? Para algumas pessoas é extremamente complicado tocar na questão. E isso se estende ao cinema. Ainda é difícil para a sétima arte lidar com o assunto de forma mais séria – deve ter sido por isso que um filme como “sexo, mentiras, e videotape” (grafados assim mesmo, sem letras maiúsculas) causou tanto burburinho na época de seu lançamento, em 1989, abrindo as portas para outras produções do tipo. Confesso que, quando assisti ao filme pela primeira vez, ainda na época do videocassete, eu não o entendi muito bem (aos dezesseis, quem entende alguma coisa?), mas nada como a maturidade dos trinta anos para lhe dar perspectiva enquanto assiste novamente a este drama denso.

É isso mesmo: um drama. Um drama denso, sobre sexo. Se você piscar muito, corre o risco de não entender o enredo (confia em mim, sei do que falo), apesar do mesmo seguir lentamente. A história gira basicamente em torno de quatro personagens: Ann, sua irmã Cynthia, o marido John e o amigo deste, Graham. Logo nas primeiras cenas, vemos Ann conversando com seu analista sobre o lixo, mas o assunto é apenas desculpa. O que a está aborrecendo é o fato do marido, o advogado John, ter convidado um ex-colega de faculdade para passar uns dias em casa enquanto este não encontra um lugar para morar. Um outro fato também a está incomodando: ela não gosta de sexo (só de tocar no assunto, ela já morre de vergonha), já não curte ser tocada pelo marido porque não sente desejo. Mal sabe ela que John, na verdade, é um egocêntrico conquistador e mentiroso, que logo na primeira cena em que o vimos, conta a um amigo a vantagem de ser um homem casado: uma aliança no dedo anelar é o suficiente para chamar a atenção das mulheres e levá-las para a cama. E entre as suas conquistas, está a irmã de Ann, Cynthia. Mais sexualmente liberal que a irmã, Cynthia não sente culpa alguma da traição que comete com o cunhado, muito pelo contrário, é o que a estimula. Mas por trás daquele jeito desinibido, se esconde uma mulher despeitada por se sentir inferior à irmã mais velha. Fechando o quadrado, temos Graham, o tal ex-colega de faculdade: se eu fosse escolher uma palavra para defini-lo, tão logo ele aparece na casa de John e Ann, essa seria “estranho”. Entretanto, isso logo desaparece devido a atuação marcante de James Spader – ele dá o tom certo de mistério ao personagem, que desperta a curiosidade do espectador e o fascínio de Ann. Quem é Graham? Por que ele se veste daquele modo, sempre de jeans e camisa preta? E a história da “única chave”? Quando o recém-chegado afirma que ele e John eram parecidos na época do colégio, e Ann comenta que os dois amigos não se parecem em nada agora, Graham revira os olhos, morde o lábio inferior e sorri antes de concordar; tudo isso só aumenta a empatia do público com o personagem, elevando a expectativa de ver aonde isso vai dar.

"Posso lhe contar algo pessoal?"


Ressalto que, apesar da história envolver os quatro, é pela perspectiva de Ann que o filme em sua maior parte se desenrola. Ela nada sabe da relação entre o marido e a irmã, mas no fundo desconfia de que John a trai. E quando o marido pede à esposa que acompanhe Graham na procura por uma morada, com a intenção de mantê-la longe enquanto se diverte com a cunhada na cama do casal, ele sequer imagina o impacto que tal pedido causará na vida de todos: ele acaba por aproximar Graham e Ann, que se tornam confidentes! A mulher compartilha com o novo amigo o que pensa sobre sexo e ele conta a ela que é impotente, isto é, não consegue uma ereção na presença de outra pessoa. Pronto: a partir daí, o enredo começa de fato, pois Ann se identifica com a personalidade franca e introspectiva de Graham de tal forma, que chega a sentir ciúmes dele quando Cynthia diz que é capaz de seduzi-lo. E o fato do visitante ter revelado algo tão delicado de forma tão aberta – um tabu, para muitos homens – faz com que Ann queira se aproximar dele ainda mais, como mostra a cena em que ela o observa dormindo. Quando ela se afasta, ele abre os olhos, e por um momento, cheguei a pensar que Graham agia dissimuladamente, manipulando Ann com algum objetivo; afinal, os olhares dele para ela no restaurante, somado aquela opinião de que “ninguém deveria aceitar conselhos de alguém que não conheça intimamente” (entenderam o “intimamente”?), são de alguém que está ultrapassando os limites do simples interesse para algo mais profundo. Contudo, ficou difícil manter este argumento quando a moça descobre as fitas de vídeo na casa dele; quando questionado, Graham não mente, e responde que são sobre mulheres falando sobre sexo. Chocada, ela sai correndo de lá, e liga para a irmã, única pessoa com quem conversa além do terapeuta. É claro que isso atiça a curiosidade de Cynthia, que vai atrás de Graham para saber o que se passa. E, por ser sexualmente mais experiente que a irmã mais velha, ela adivinha: Graham grava mulheres falando sobre sexo porque é o único meio que ele encontrou para se satisfazer sozinho. Ele, então, faz o convite: “Por que não gravamos uma fita?”. Óbvio que Cynthia aceita, porém sua decisão fará com que ela reflita sobre sua vida e, principalmente, sobre sua relação com John (ela até tenta seduzir Graham, sem sucesso). Quando o rapaz assiste à fita que acabou de gravar, suas expressões revelam o início de uma mudança: Graham aparenta não gostar quando Cynthia menciona Ann e a infidelidade de John, talvez devido à aproximação que surgiu entre ele e a esposa do amigo. Não creio que alguma das mulheres que gravou fosse assim tão próxima, e ver alguém como Ann, com quem se estabeleceu uma confiança, ser inserida dessa forma em seu “projeto muito pessoal” parece que o desagrada. Claro que esta é a sensação que eu tenho, ainda mais quando Ann descobre a traição de John e Cynthia. Desnorteada com a descoberta, ela vai até Graham, e pede para gravar uma fita; a princípio, ele se nega, mas Ann insiste e o rapaz acaba cedendo. No fundo, fica a impressão de que Graham queria gravá-la desde a primeira vez que se viram (chegando a perguntar se ela já havia aparecido na televisão), mas por algum motivo, a ideia foi descartada – mas não de todo, é só notar o tanto que Graham morde o lábio inferior quando está perto de Ann. Quanto ao vídeo, ainda não ficamos sabendo o que foi dito e questionado, pois a cena da entrevista é cortada para mais adiante, mostrando os dois MUITO próximos, ele olhando fixamente para ela daquele jeito que toca fogo até na mais gélida das mulheres. Não parece ter acontecido alguma coisa; mas o olhar determinado de ambos nos mostra que algo importante está para acontecer.

" - Você pensa em mim?"
" - Sim, eu penso."

Ah, esse seu olhar 43...


Ann volta para casa e pede o divórcio a John, que fica revoltado. Quando a mulher conta que foi atrás de Graham, John percebe que o amigo está lhe tirando o “status” de que tanto se orgulha, e ainda por cima sem ter dito uma única mentira – seu tolo consolo é saber que a esposa e o amigo não chegaram às vias de fato devido à impotência deste (será mesmo? O olhar dela deixa a dúvida). Entretanto, a alegria dura pouco quando Ann conta que gravou uma fita: John não suporta a ideia do que Graham fará ao assistir a entrevista, e trata isso como se estivesse no mesmo nível da traição que cometeu. Além de egocêntrico e mentiroso, é um hipócrita. Um hipócrita que vai atrás do amigo, o agride e o tranca para fora de casa a fim de assistir a fita; quarenta e seis minutos de gravação, onde Ann confessa que nunca sentiu prazer no sexo com John, e quando questionada se já cogitou em fazer sexo com outro homem que não o seu marido, ela admite que pensou – e pensa – em Graham. Quando Ann pergunta para Graham se ele pensa nela, o rapaz também admite que sim. “No que você pensa?”, ela pergunta, “Penso em como você ficaria tendo um orgasmo.”, ele responde. É a deixa para Ann virar o jogo contra Graham: extremamente desconfortável, ele tenta finalizar a entrevista, mas Ann não permite, fazendo-o admitir que passou os últimos nove anos de sua vida cuidando para não se relacionar com ninguém. Isto significa que Graham, na verdade, NÃO é impotente: arrasado com o abandono de uma namorada, ele procurou evitar se apaixonar e/ou se relacionar e usou a desculpa da impotência para afastar-se sentimental e fisicamente de qualquer uma que o atraísse ou se sentisse atraída por ele, usando as entrevistas gravadas como meio de satisfazer suas necessidades sexuais. A ironia é ter sido justamente essa desculpa que fez Graham e Ann se aproximarem, mudando a perspectiva de ambos sobre a vida, o amor e o sexo: mesmo que ele tentasse negar seus sentimentos, seu comportamento na entrevista expõe o que queria esconder, e numa cena do tipo “não mostra nada, mas diz tudo”, Ann, pela primeira vez na vida, toma a iniciativa e seduz Graham – melhor dizendo, Graham se permite ser seduzido por Ann.

" - Você teve um grande efeito na minha vida."
" - Não era para isso acontecer."

Ann seduz Graham - ou Graham se deixa seduzir por Ann.

John assiste ao videotape de Ann.
Tem castigo melhor?


No final, se era Ann que Graham queria desde o começo, mas tentou reprimir-se pelos motivos apresentados, isso é algo que permanece no campo da suposição para ser discutido, ainda mais se retomarmos uma citação feita por ele na cena do restaurante: “um homem aprende a amar a pessoa por quem se sente atraído, e uma mulher se sente mais e mais atraída pela pessoa a quem ama” – isso resume exatamente os acontecimentos envolvendo os dois, e que acabam por mudar suas vidas e as dos demais. A única certeza é que Graham já não precisa mais das fitas, tanto é que as destrói uma por uma depois que John tenta humilhá-lo contando coisas sobre a tal ex-namorada. O advogado, aliás, além de ficar sem a mulher, perde também a amante, só restando o trabalho, o que não lhe é o suficiente. Cynthia aparentemente deixa de ser tão volúvel, e a cena final, mostrando a satisfação e a cumplicidade entre Graham e Ann, revela o quanto eles superaram os próprios receios e preconceitos, respectivamente, a algo tão natural que é o sexo. A carícia dele no braço dela só confirma a transformação que ambos sofreram para quebrar as correntes que os prendiam, psicologicamente falando: não há remorso, ou qualquer outro obstáculo que impeça o relacionamento. Enfim, voltando para a realidade, num mundo onde boa parte das pessoas se inicia sexualmente antes dos quinze anos (em dados oficiais), informação – correta – e diálogo é do que mais se precisa para que não haja nenhum tipo de amarra que impeça o prazer. Então, eu pergunto: o que falta para nós também nos libertarmos?  Enquanto o sexo ainda for tratado como tabu, ele continuará sendo um problema mal resolvido, e mote para cenas desagradáveis na televisão e no cinema. Sexo é um assunto que não sai da cabeça de ninguém, e quando alguém se dispõe a expor o que pensa sobre isso de forma séria, quem ganha é todo mundo. Um filme como esse, que pôs o tema sob uma perspectiva analítica numa época que ninguém se atrevia a tanto, foi um bom começo.

Graham e Ann: atração, desejo, Amor.

... Tanto que o filme foi aclamado pelo mundo inteiro e ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes e o prêmio de Melhor Ator para James Spader – um ator extremamente competente, que desde então nunca mais saiu de nossa vista. Ainda bem. Se não fosse a minha profunda admiração por ele, já teria desistido de aprender Inglês.

P.S.: Não sei por que classificam este filme como comédia, pois não há uma única cena cômica até o fim. Para mim, este é um drama, ponto.

P.S.²: Feliz 2014!

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