sábado, 2 de agosto de 2014

COMO ÁGUA E VINHO – Sobre “Norte & Sul”, de Elizabeth Gaskell

Um romance bem escrito quase sempre nos ajuda a compreender a História. Principalmente quando o autor ou autora vivenciou aquilo que descreveu.

 
Capa da edição brasileira, Editora Landmark


Se há uma característica na Literatura que nunca podemos nos esquecer é o contexto histórico. Saber a quantas andava aquele período da História quando da publicação de um romance nos ajuda a compreender o retrato descrito pelo autor, mesmo que a ambientação em questão tenha ocorrido séculos antes; uma história quase sempre lança uma nova perspectiva sobre os fatos. Um exemplo disso é “O Tempo e o Vento”, de Érico Veríssimo, que retrata o Rio Grande do Sul desde a sua fundação no Brasil Colônia até quase a metade do século 20. Entretanto, mesmo com muita pesquisa histórica, corre-se o risco da idealização do período compreendido, pois o abismo entre o que se viveu e o que se ouviu falar é muito grande – é só lembrar Margareth Mitchell e o seu “...E o Vento Levou” com seus escravos dóceis e felizes. Felizmente, tal risco não chegou nem perto de “Norte & Sul”, de autoria de Elizabeth Gaskell.

Gaskell viveu em Manchester, na Inglaterra, no auge da Primeira Revolução Industrial ocorrida no século XIX; testemunhou o surgimento de uma nova relação de trabalho, cheia de atritos, entre os ricos industriais e os operários, classes que surgiram imediatamente com a necessidade de mão de obra para operar as máquinas, tecnologia avançada para a época, e que mudou para sempre a economia do mundo. Vinda da região Sul inglesa, essencialmente agrário, óbvio que o choque cultural da autora foi muito grande, e é esse o fio condutor do romance. Como o próprio título já diz, a Revolução Industrial dividiu a terra da Rainha em Norte – industrial e urbano – e Sul – rural e interiorano. Dois pólos opostos, duas faces da mesma moeda, dia e noite, água e vinho; tudo parece fazer com que as duas regiões se colidem, tanto no aspecto físico como cultural, representados pelos protagonistas: Margaret Hale, originária de Helstone, sul da Inglaterra, ensolarada, cercada de plantações e pela sociedade ruralista do lugar; e Mr. John Thornton, de Milton, norte da Inglaterra (claramente uma referência à Manchester), fria, cinza, nublada, regrada como um relógio e preenchida pelo barulho das máquinas. Imaginamos logo que haverá um romance entre os dois, devido à fascinação que Thornton sente por Margaret desde o momento em que a vê, quando visita a família Hale pela primeira vez.

“(...) Em vez de um tranquilo clérigo de meia-idade, uma jovem dama adiantara-se com ar digno e franco – uma jovem dama de um tipo diferente da maioria daquelas que ele costumava encontrar. (...)Ele não entendeu quem ela era, quando se deparou com seu olhar direto, inocente e destemido. Um olhar que mostrava que a presença dele não perturbava aquele belo semblante, nem trazia qualquer rubor ao pálido marfim daquele rosto. Ouvira falar que Mr. Hale tinha uma filha, mas imaginara que fosse uma menininha.(...)”

“(...)o pai, com sua gentil hospitalidade do campo, estava insistindo com Mr. Thornton para que almoçasse com eles. Seria muito inconveniente para ele ter que ficar, embora achasse que teria concordado, se Margaret desse alguma indicação, por olhares ou palavras, de que apoiava a intenção do pai. Ficou feliz porque ela não fez isso, embora ao mesmo tempo se irritasse com ela por não tê-lo feito. Quando ele saiu, ela saudou-o brevemente, com ar sério, e ele sentiu-se mais embaraçado e consciente de si mesmo do que jamais havia estado em toda a sua vida. (...)”

 

Confesso que nunca esperei tanto por uma cena de amor. Parece que os escritores ingleses gostam de nos torturar! É certo que um romance não é um romance sem que haja um atrito – ou vários – que impeça os dois protagonistas de se aproximarem. Mas no caso de “Norte & Sul”, o maior obstáculo entre Thornton e Margaret é a própria Margaret. Ela é a personagem mais IRRITANTE que já li na vida, ganhando fácil de Marianne, personagem de “Razão e Sentimento”, de Jane Austen. Suponho que deveria ser essa a intenção de Elizabeth Gaskell, pois nunca tive tanta vontade de estapear a mocinha com o decorrer dos capítulos. As diferenças entre o Norte e o Sul levam Margaret a se tornar insuportavelmente intransigente. Várias vezes parei a leitura para me perguntar: como é que alguém tão inteligente não CONSEGUE perceber que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa? Há momentos em que ela soa preconceituosa, tanto com a cidade de Milton, quanto com Thornton, e haja paciência até notar alguma mudança de tom na personagem. Quem sofre com tudo isso, claro, é o pobre rapaz. O coitado sempre tenta cair nas boas graças de Margaret, mas devido à aversão dela contra ele (e também a cidade, e ao sistema econômico provocado pela indústria), o infeliz sempre chuta na trave. O único dos Hale que o entende é pai da jovem, Mr. Hale, um ex-pároco da Igreja Anglicana que abandonou a Ordem devido às dúvidas pessoais e se tornou professor. De início, os dois homens querem apenas observar um ao outro e discutir Filosofia (Thornton é um dos alunos de Mr. Hale), mas no fim, acabam por firmar uma amizade sincera que supera qualquer diferença. Contudo, é discutindo as relações de trabalho entre patrões e operários que a beleza do sorriso de Thornton desaparece da memória de Margaret. Como a jovem fez amizade com uma família de operários, os Higgins, ela sempre bate de frente com as opiniões de Mr. Thornton quando o assunto é negócio. Qualquer um teria mandado a garota pastar num campo sem sombra, mas o rapaz simplesmente adora ouvi-la, mesmo que ela o irrite a maior parte do tempo.

“(...)
– Por favor, não faça comparações, Margaret. Você já nos desviou do assunto antes com isso... – disse seu pai, sorrindo.
Apesar do sorriso, sentia-se constrangido, pois pensava que estavam retendo Mr. Thornton contra a sua vontade. Era um engano, pois ele preferia ficar, desde que Margaret falasse – embora o que ela dissesse apenas o irritasse.(...)”

 
E apesar do que ela pensa sobre ele, outros personagens vêem Thornton não como um tirano, mas como homem de ideias firmes e que dificilmente volta atrás em suas decisões. Para Higgins, Mr. John Thornton é o tipo de homem contra quem vale a pena lutar, por ser justo, e nunca usar de mentiras e enganos para submeter seus trabalhadores, como era costume entre os patrões na época.

"(...)
– Thornton! – disse Margaret. – Fala de Mr. Thornton, de Marlborough Street?
– É, sim! Thornton da Fábrica Marlborough, como nós o chamamos.
– Ele é um dos patrões contra quem estão lutando, não é? Que tipo de patrão ele é?
– Você já viu um buldogue? Ponha um buldogue sobre as patas traseiras, vista-o com casaco e alças e você terá John Thornton.
– Não – disse Margaret, rindo. – Eu nego isso. Mr. Thornton é bastante comum, mas não parece um buldogue, com aquele nariz curto e largo, e a boca meio aberta, rosnando.
– Não, não na aparência, eu concordo. Mas deixe John Thornton se apossar de uma ideia e ele vai se agarrar a ela como um buldogue. Você tem que puxá-la para fora com um forcado antes que ele largue. Se há um homem com quem vale a pena lutar, é John Thornton. Quanto a Slickson, na minha opinião, em poucos dias ele vai adular seus homens com promessas para que voltem, e vai enganá-los logo que estejam de novo sob seu poder. Vai empurrar suas multas para cima deles, eu garanto. Ele é tão escorregadio quanto uma enguia, é mesmo. É igual a um gato – elegante, astuto e feroz. A luta com ele nunca será justa, como será com Thornton. Thornton é tão sério como uma tranca de porta, um camarada obstinado em cada centímetro – o velho buldogue!"


Aliás, os pontos altos do romance são justamente a caracterização da sociedade industrial que emergia na época. Vale lembrar que, em romances como os de Jane Austen e das irmãs Brontë, dificilmente havia a possibilidade de ascensão social se não fosse pelo casamento, a proteção de uma família de posses ou alguma herança inesperada – apesar de Gaskell utilizar esse último artifício com a Margaret nos capítulos finais, porém a personagem é uma estranha naquele ninho chamado Milton. Thornton não. Ele é o legítimo representante do que a Revolução Industrial fez para a sociedade inglesa do período. Aqui ninguém tem título de nobreza, com rendas de trinta mil libras anuais, e sim, alguém que luta todos os dias para manter-se na posição em que está, conseguida através de muito sacrifício, disciplina e renúncia. Thornton é um homem que chegou à riqueza com as próprias pernas e de forma lícita, e tem o respeito de todos à sua volta por não mais que o próprio mérito. Ele, mais do que todo mundo, sabe que a luta dos operários é válida, mas apenas até certo ponto; apesar de ser o patrão, também trabalha tanto quanto seus empregados, porque é consciente de que todos dependem dele. Por isso é que tanto critica a classe operária, pois para Thornton, todos têm a chance de ser o que ele é agora, só não conseguem porque desperdiçam com banalidades; e também ao Governo, por querer interferir em algo que não participam e, portanto, não compreendem.

"(...) 
– Homens do mesmo nível, quanto a educação e situação, de repente tomam posições diferentes. Tornam-se patrões ou empregados, devido tanto ao seu talento natural, quanto às oportunidades e probabilidades que distinguem alguns, e os faz enxergar longe o grande futuro que jaz escondido (...)O rápido desenvolvimento daquilo que podemos chamar de um novo negócio deu a esses primeiros patrões enorme poder de riqueza e comando. (...) Imagine um homem ditando dessa maneira o horário em que venderia ou não venderia o seu produto. Agora, creio, se um bom cliente resolve vir à meia-noite, devo me levantar e esperar de chapéu na mão pelas suas ordens. (...) Só porque um homem tem sucesso nas suas aventuras, não há razão para supor que em todas as outras coisas sua mente seja igualmente equilibrada. Ao contrário, seu senso de justiça e sua simplicidade são totalmente sufocados pela abundância da riqueza que cai sobre ele."
 

"(...)
– Também não há dúvida a respeito da tirania que exerciam sobre os seus empregados. (...) Mas, aos poucos, veio a reação. Havia mais fábricas, mais patrões, precisava-se de mais operários. O poder dos patrões e empregados se tornou mais equilibrado. E agora a batalha é travada honestamente entre nós. Dificilmente nos submeteremos à decisão de um árbitro, muito menos à interferência de um mediador com um conhecimento apenas limitado sobre a realidade dos fatos, mesmo que esse mediador seja a Alta Corte do parlamento.(...)"
 
E quando Margaret pergunta, com uma certa ironia arrogante, se ele considera inimigos todos os que não tiveram a mesma sorte que ele, Thornton mostra que sorte não foi sua companheira em nenhum momento, ao revelar seu passado. A partir desse momento, Margaret passa a respeitá-lo um pouco mais – mas só um pouco, já que não deixa de discutir com ele quase todas as vezes em que se encontram. De novo, haja paciência!

"(...) 
– Dezesseis anos atrás, meu pai morreu em circunstâncias miseráveis. Fui tirado da escola e tive que me tornar um homem (tão bem como pude) em poucos dias. Tenho uma mãe que poucos têm a bênção de possuir, uma mulher de poderosa força e firme resolução. Fomos para uma pequena cidade no campo, onde a vida era mais barata que em Milton, e lá consegui emprego em uma loja de tecidos – um lugar fundamental, diga-se, para obter um bom conhecimento da mercadoria. Semana após semana, nossa renda chegou a quinze xelins, com a qual devíamos manter três pessoas. Minha mãe administrou as coisas de modo que eu pudesse separar três xelins desses quinze, regularmente. Isso foi o começo, ensinou-me a renunciar. Agora que sou capaz de proporcionar à minha mãe o conforto que a sua idade, mais do que o seu desejo, exige, agradeço-lhe silenciosamente em cada oportunidade, pelo treinamento que me proporcionou. Agora, quando percebo que, no meu caso, não se tratou de sorte, nem de mérito, nem de talento – mas simplesmente dos hábitos de vida que me ensinaram a desprezar qualquer satisfação que não seja merecida, e nunca pensar duas vezes sobre isso– acredito que esse sofrimento, que Miss Hale diz estar impresso nos semblantes do povo de Milton, não é mais do que a punição natural pelos prazeres desfrutados sem merecimento, em algum período anterior das suas vidas. Não acho que as pessoas que amam a boa vida e os prazeres materiais mereçam o meu ódio. Eu apenas os desprezo pela sua pobreza de caráter." 
 
Do outro lado da balança, temos o operário Higgins. Obstinação é a palavra que melhor o define. Ele realmente acredita no poder do Sindicato dos Operários em melhorar a vida destes através da greve, mesmo sacrificando a relação que tem com suas filhas, uma delas Bessy, de quem Margaret fica muito amiga. Contudo, o operário faz vista grossa a algumas atitudes dos sindicalistas que, francamente, na minha visão, não são nada éticas. Aliás, algumas atitudes dos trabalhadores descritas neste livro do século XIX são vistas até hoje, principalmente durante as greves, como aquela ocorrida nas fábricas de Milton. Era como se eu lesse uma notícia no jornal de hoje, tamanha a similaridade. E como toda corrente, esta também tem um elo fraco, que atende pelo nome de John Boucher. O operário é o oposto de Higgins, é um homem fraco, que pela necessidade bate de frente com o amigo que, claro, defende as decisões do Sindicato com unhas e dentes – parecidíssimo aos trabalhadores sindicalizados dos dias atuais. Gaskell, definitivamente, retratou com precisão cirúrgica ambos os lados do nascente capitalismo e os seus efeitos na sociedade da época. Como um dia já foi empregado, Thornton tem uma visão mais sensata dessa relação, mas não deixa de dar aquela alfinetada básica que nos faz comparar o passado com o presente e pensar “hum, faz sentido”.

"– (...) Certamente, ainda não chegou o momento da mão de obra ter alguma independência de ação durante as horas de trabalho. Então não sei bem o que quis dizer com isso. Mas sei que os patrões estão abrindo caminho para a independência dos seus trabalhadores de um modo que eu, como um deles, não acharia justo fazer, pois se interferimos demais na sua vida eles começam a deixar as fábricas. Só porque trabalham dez horas por dia para nós, não acho que temos o direito de impor uma orientação e um controle sobre aquilo que fazem com o resto do seu tempo. Dou tanto valor à minha independência, que não posso imaginar degradação maior do que ter outra pessoa eternamente me dirigindo e me aconselhando e me reprovando – ou mesmo planejando qualquer uma das minhas ações.
– E como será esse ataque? – perguntou Mr. Hale.
– Eu presumo que será uma greve geral. Creio que dentro de poucos dias a senhora verá Milton sem a fumaça, Mrs. Hale.
– Mas por quê? – perguntou ela. – Os senhores não podem explicar as razões sérias que têm para esperar maus negócios? Não sei se usei as palavras certas, mas creio que entenderá o que digo.
– A senhora explica aos seus criados as razões pelas quais gasta ou economiza seu próprio dinheiro? Nós, os capitalistas, temos o direito de escolher o que fazer com o nosso capital." 


(Abro um parêntese para fazer uma pergunta irresístível: o que Karl Marx diria sobre isso? Não, não respondam.)

Lembrando que tal assunto permeia boa parte do livro, uma pergunta surge aos meus ouvidos: “sim, cadê o romance?”. Como dito anteriormente, o romance de fato demora, mas o flerte é de encantar. Por mais que a dinâmica entre Thornton e Margaret acabe em discussões em noventa por cento das vezes em que são postos juntos no mesmo cenário, a fascinação exercida pela moça sobre o jovem industrial é descrita de um jeito que não nos dá outra escolha a não ser nos apaixonar pelo sentimento de Amor nutrido por ele. É simplesmente cativante o modo como Gaskell descreve as situações onde Thornton troca a veste austera de “patrão” pela de “homem apaixonado”. Não há como, repito, não há como não se deixar levar pela paixão do rapaz por Margaret, principalmente quando esta tenta defendê-lo da fúria dos operários e acaba atingida por uma pedra lançada por alguém na multidão. Thornton, que até aquele momento nunca havia admitido nem para si mesmo o quanto a amava, ao vê-la desmaiada e ferida, declara-se num rompante que faz qualquer leitor vibrar, tamanha a emoção que o momento causa.

"– Oh, minha Margaret, minha Margaret! Ninguém sabe o que você é para mim! Morta... fria como está agora, você ainda é a única mulher a quem amei! Oh, Margaret! Margaret!"

(Pronto, é mais um leitor conquistado!)

Porém, é claro que, num romance onde as relações sociais são postas em xeque, a realização do Amor também não seria fácil. Margaret chega a ser pedida em casamento por John, mas recusa de forma até um pouco impertinente. Para piorar, ela tem um irmão mais velho, Frederick, vivendo exilado fora do país por questões legais (e cuja existência ninguém em Milton tem conhecimento) que retorna à Inglaterra por ocasião da enfermidade da mãe – que acaba falecendo – e ao sair da cidade acaba sem querer jogando Margaret numa situação complicada. Obrigada a mentir para salvar o irmão, ela sente o baque de se ver maculada perante os olhos de Thornton, que flagrou a despedida dos dois irmãos e julgou estar testemunhando o encontro de dois amantes. O ciúme, claro, se faz presente, e o jovem industrial passa a tratá-la com certo distanciamento, para a mortificação de Margaret, que até aquele momento não fazia ideia do quanto que a atenção que Thornton lhe dispensava faria tanta falta para ela, e francamente, eu vibrava a cada frase carregada de frieza proferida por ele quando a encontrava. A mulher passa MAIS DA METADE do livro maltratando o homem, e quando se vê rebaixada perante ele, sem poder se explicar, muda completamente de comportamento. BEM FEITO!,era o que eu mais dizia enquanto lia os desencontros dos dois, com Thornton sempre saindo por cima e Margaret desolada por não poder desfazer o mau entendido. Claro que toda essa circunstância é uma tortura para o rapaz que, apesar da suspeita de que ela não seria digna de seu sentimento, ama Margaret mais do que antes.

“Ah! Aquele olhar de amor!” disse ele, entredentes, quando se trancou no seu próprio quarto. “E aquela maldita mentira, que mostrou alguma vergonha terrível no fundo, para ser mantida longe da luz na qual eu pensei que ela vivesse eternamente! Oh, Margaret, Margaret! Mãe, como você me torturou! Oh! Margaret, você não poderia ter me amado? Eu sei que sou apenas rude e duro, mas eu nunca a teria levado a mentir por mim.”

 
E como desgraça pouca é bobagem, tudo coincide com a falência de sua fábrica. Nem mesmo as pazes com Higgins amenizam o inferno astral do industrial, e sua maior preocupação, além do devido pagamento dos empregados, é o bem estar de sua mãe, a orgulhosa e amendrontadora Mrs. Thornton. Já Margaret, ao se ver sozinha no mundo – Mr. Hale também acaba morrendo –, caminha para o lado oposto: volta para Londres, onde acaba por receber uma herança. Um tempo se passa, e apesar dos esforços da família de sua tia em casá-la com um primo, o pensamento dela sempre está em Milton e, claro, em Thornton. Sabendo das condições em que ele se encontra, ao reencontrá-lo na capital inglesa, ela aproveita o momento oportuno para lhe propor sociedade a fim de reabrir a fábrica. Entretanto, para a alegria (e alívio) geral, Thornton lhe faz uma contra-proposta sem precisar dizer muito além de “Margaret” – por duas vezes. É a cena final do romance: a moça finalmente dá o braço a torcer, e admite que ama John Thornton, para a felicidade deste (e minha), que numa frase corriqueira sobre flores dá todo o significado de um novo pedido de casamento, que é aceito com bom humor.

A minissérie da BBC baseada no romance.

Concluo afirmando que “Norte & Sul” pode muito bem ser classificado como romance histórico, tamanha a propriedade de ambientação que só uma observação in loco pode dar; a importância da Revolução Industrial e dos seus efeitos na sociedade é algo que NÃO deve ser pouco estudado, visto que perdura até os dias de hoje, com o surgimento de novas tecnologias e também as relações de trabalho. Se Jane Austen e Charlotte Brontë se preocuparam em retratar as pessoas dentro de um círculo social, Elizabeth Gaskell foi além, ao descrever uma sociedade dentro de um ambiente, onde todos cumprem cada qual sua função. Todos ali têm uma, patrão e empregado, pais e filhos, amigos, todos sofrendo a crescente mudança que o surgimento da indústria causou em suas vidas. Se o Homem um dia será substituído pela máquina é uma hipótese a ser considerada para ontem, pois isso traria implicações muito mais sérias e mais profundas do que apenas o desemprego (a maior preocupação à época do livro). Uma máquina nunca será como um homem, verdade, pois para ser uma força de trabalho, é preciso que a possua em seu corpo na forma da vontade: de mudar, de viver, de fazer o seu melhor para si e para todos. O Homem e a máquina nunca serão como a água e o vinho, que misturadas, não deixam de ser bebida; mas não é por esse motivo que não podem formar um conjunto em prol de um bem comum, pelo contrário – é só agir com sensatez. Quanto ao Amor, ah, esse sim, se deixar, faz da água e do vinho uma única bebida, só que nova, diferente e ainda mais saborosa... E não é isso o que todos procuram, afinal de contas? Gaskell, enfim, soube pintar um retrato com as palavras.

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