Mário Quintana (1906-1994) talvez seja o poeta menos estudado de nossa
Literatura. Dá-se tanta importância – merecidamente é claro – a Drummond,
Vinícius, Bandeira e Cabral de Melo Neto na poesia modernista brasileira que a
comunidade acadêmica acaba deixando este gaúcho de lado nos conteúdos programáticos
do curso de Letras. Tudo bem, eu posso até entender que é muito autor a ser
estudado num curto período de tempo. Mas não acho certo que Quintana sequer
seja citado nas aulas. Afinal, as poesias dele contêm todos os elementos que
compõe o gênero na fase literária em que ela foi inserida, a Geração de 1945,
marcada pela experimentação poética: versos ora brancos, ora rimados; métrica
diversa típica da poesia da época, quando se abandonou o rigor formal; cenas
cotidianas, que a mágica quintanar (como diria Manuel Bandeira) transforma em
algo único. Tão fácil de entender é, que o livro é devorado em apenas algumas
horas, tamanha a vontade de ler uma poesia após outra.
Deixando a Poética de lado e todo aquele didatismo
analítico, apenas me atendo às impressões, toda vez que leio Quintana, e o seu
“O Aprendiz de Feiticeiro”, é como se eu estivesse no meio de uma conversa
agradável sobre trivialidades. O olhar do poeta sobre o comum é algo que me
fascina desde que o descobri. Tudo é tema para seus versos: o dia a dia, o Amor,
a mulher e até a música, como em “Jazz”. Melancólica como aquela que lhe dá
título, nos faz pensar na transmutabilidade do Tempo: mesmo seguindo adiante, sem olhar para trás, algo sempre permanece como que testemunhando um evento após
outro, porém indiferente, tratando os acontecimentos como sem importância.
O Anjo de Pedra que está sempre
imóvel por detrás
[de
todas as coisas
Em meio aos salões de baile,
entre o fragor
[das
batalhas, nos comícios das praças públicas
E em cujos olhos sem pupilas,
brancos e parados
Nada do mundo reflete
E como todo poeta que se preze, também Quintana faz uso da
metalinguagem em poemas de um mesmo título, “O poema”. Aqui, ele revela o que
pensa, e não há como não ficar intrigado com suas ideias sobre o assunto.
Um poema como um gole d’água
bebido no escuro
Com um pobre animal palpitando
ferido
Como pequenina moeda de prata
perdida para sempre na floresta noturna
Um poema sem outra angústia que a
sua misteriosa condição de poema
Triste.
Solitário.
Único.
Ferido de mortal beleza.
Provar o desalento nascido de alguma perda e do mistério que
habita todas as coisas, daquilo que não se vê e não se sabe de onde veio – a
noite, a escuridão, vendam os olhos do poeta, obrigando-o a sentir a poesia de
outra maneira, levando-o a enxergá-la de outra perspectiva. Seria a solução
assassinar o poeta, para que não se corra o perigo de cair no abismo? Não, ao
menos não de fato; aqui, um vocábulo tão forte recebe uma conotação menos
agressiva e mais irônica, servindo de instrumento a de fim de cutucar com vara
curta aqueles que detratavam Quintana. Entendendo a poesia como um gole d’água
no escuro e uma pedra no abismo, o autor toma a sua posição perante os colegas
de verso: assassinar o poeta é matar a poesia “certinha”, “cheia de regras”,
com a métrica perfeita, e dar lugar à poesia que surge no salto “vendendo
súbitos espanadores de todas as cores”. Também carregado de ironia quintanar
são os poemas de cunho religioso, ora questionador (“De que nos serve agora o Cristo no Corcovado?”), ora melancólico,
como em “No silêncio terrível”. O fim da vida, a morte, também são temas.
O meu caixão será de mogno.
(...)
A vida é muito curta mesmo...
E as estrelas não formam nenhum
nome.
Para quê tanta materialidade, luxo, se nada da vida se leva?
As constelações têm nomes de deuses e heróis, seres excepcionais; mas quem
deles viveu realmente entre nós? A imortalidade literal não existe, e somente
aqueles que aceitam a finitude da vida entendem a beleza do efêmero e da graça
do viver. Mário Quintana observava tudo, nada lhe escapava, e ele entendia e
assimilava as coisas de uma forma que nos passaria batido se não fosse seus
versos.
O poeta Mário Quintana, autor do livro "O Aprendiz de Feiticeiro"(1950). |
“O Aprendiz de Feiticeiro”, originalmente publicada em 1950,
é uma aula de poesia que Quintana nos oferece, através dos temas mais visitados
no gênero. É como um ritual de iniciação, um batismo de fogo para aqueles que
ousarem adentrar o mundo mágico da poesia, através dos feitiços em forma de
versos quintanares. Termino esta resenha transcrevendo o poema que eu mais
gostei, por reunir toda a essência do poeta e refletir o comum como se fosse
extraodinário, e o verso a forma mais original de traduzi-lo.
Ao longo das janelas mortas
Ao longo das janelas mortas
Meu passo bate as calçadas.
Que estranho bate!... Será
Que a minha perna é de pau?
Ah, que esta vida é automática!
Estou exausto da gravitação dos
astros!
Vou dar um tiro neste poema
horrível!
Vou apitar chamando os guardas,
os anjos, Nosso Senhor,
[as
prostitutas, os mortos!
Venham ver a minha degradação
A minha sede insaciável de não
sei o quê,
As minhas rugas.
Tombai, estrelas de conta,
Lua falsa de papelão,
Manto bordado do céu!
Tombai, cobri com a santa
inutilidade vossa
Esta carcaça miserável de
sonho...
Só posso dizer que você torna tudo muito difícil de não se gostar.
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