terça-feira, 2 de setembro de 2014

LIBERDADE, AINDA QUE TARDE – Sobre o filme “Um sonho de Liberdade”

“Esforce-se para morrer ou esforce-se para viver”. Mantenha-se esperançoso, mantenha-se sonhador.



Quando eu era estudante de Letras, uma frase de minha professora de Filosofia surpreendeu a todos na classe, por parecer mais um delírio do que um comentário durante a aula: “é preciso se perder, para se encontrar”. Naquele dia, ninguém entendeu, alguns alunos até riram da frase aparentemente absurda. Contudo, olhando para trás, vejo que nenhuma outra frase cai tão bem para um filme como “Um Sonho de Liberdade”.

Baseado em duas obras de Stephen King (o mesmo autor de “Carrie”), o filme conta a história de Andy Dufresne, vivido pelo incrível Tim Robbins, através da ótica de Ellis “Red” Redding, intepretado por Morgan Freeman. Acusado, julgado e condenado a duas prisões perpétuas por assassinar a esposa e o amante dela, Andy não aparenta ter cometido tal crime, tamanha a calma e traquilidade de seu comportamento e personalidade. Afirma ser inocente do homicídio que o levou a Shawshank, presídio controlado pelo hipócrita diretor Norton e o violento carcereiro Hadley.Este último, apesar da farda que veste, é tão bandido quanto aqueles que habitam o lugar. Espanca sem dó nem piedade os presos que o irritam e o contrariam, mas será através dele que Andy mudará a história do lugar.


Andy e Red, personagens centrais do filme.


O interessante de assistir a um filme que retrata o cotidiano de um presídio é que, invariavelmente, observamos um microcosmo da própria sociedade que lança ali os infratores da Lei que a rege. Há aqueles que estão há tanto tempo presos que passam a tratar a prisão como “lar”, como o velho Brooks. E há os inconformistas, como Andy, que ousam ter esperança, sonhos. Mas num lugar como Shawshank, só se consegue alguma vantagem se agir com inteligência: Red, por exemplo, contrabandeia para dentro do cárcere qualquer coisa que os presos querem, é por isso que é respeitado por eles. Dentro do lugar, só uma Lei impera: faça o que quiser, contanto que não seja pego. Isso fica claro durante o filme, já que tudo feito ali dentro pelos internos é de conhecimento de todos e conta com a conivência dos carcereiros e do diretor Norton. Todos sabem, por exemplo, que Bogs estupra alguns prisioneiros (incluindo Andy), mas ele só é punido quando é do interesse de quem comanda o lugar – o carcereiro Hadley o espanca até ficar paraplégico e ele é transferido para uma prisão-hospital de segurança mínima. Entretanto,é quando Andy cai nas graças do diretor que toda a sujeira fica mais evidente, muito mais que mancha de óleo na superfície do oceano.

Diretor Norton: lobo em pele de cordeiro.


O diretor Norton tem como lema duas palavras: Disciplina e Bíblia. Porém, apesar da aparente austeridade, ele é a mais perfeita descrição do túmulo caiado: um ser humano por fora, um ser podre por dentro. Sabendo que Andy é um excelente contador – por seu passado de banqueiro – e ajudou Hadley com a herança que este recebeu de um irmão, ele o usa para um esquema de lavagem de dinheiro. Ou seja, usa um “criminoso” para praticar crime por ele. Numa conversa com o amigo Red, o ex-banqueiro resume o que está acontecendo – até sua prisão, ele era uma pessoa incorruptível; preso, passou a ser o que abominava. Claro que, por um lado, isso traz benefícios à Shawshank: Andy monta uma excelente biblioteca dentro da prisão, ajuda os internos a se formarem no colegial, e através da cultura, oferece um vislumbre de liberdade àqueles homens que não conheciam nada além da rotina entediante do cárcere. Muito significativa a cena em que, ao receber a doação de livros e discos, ele utiliza o microfone da sala do diretor para que todos ouçam uma ópera no toca-discos: a beleza da peça é como dar uma sombra de liberdades aos internos, que nunca ouviram nada tão belo do que a voz de uma soprano italiana. Por outro lado, a ganância do diretor Norton cresce a cada dia, e sabendo que Andy é uma peça rara, ele faz de tudo para mantê-lo sob seu domínio, incluindo mandar matar Tommy, um jovem delinquente por quem Andy tomou como filho, e que tinha provas da inocência dele. E é a partir daí que a história dá aquela virada surpreendente que nos faz vibrar na poltrona ou no sofá.

Tommy: morte como estopim.


Num dia qualquer, durante a chamada matinal, Andy simplesmente some, surpreendendo a todos. Red, que temia que o amigo se matasse, é o mais espantado, ao mesmo tempo que aliviado e intrigado. Como Andy conseguiu escapar? A resposta está atrás do poster que enfeita a parede da cela: um buraco grande o suficiente para uma pessoa, cavado durante vinte anos. E é Red que nos conta como tudo se sucedeu, de como a inteligência de Andy superou a esperteza do diretor que, com a imagem maculada, prefere morrer do que se igualar aos presos de Shawshank. E a cena emblemática de Andy livre, de braços abertos debaixo de uma tempestade revela que ter esperança é algo bom sim, mesmo quando privados de algo tão precioso quanto a liberdade. Culpados ou inocentes, somos responsáveis por nossos atos, é verdade, mas isso não deve tirar o nosso direito de sonhar com o futuro. Red que o diga.

Red prestes a receber a condicional: "não me importo mais".


Há uma diferença entre Red e velho Brooks aqui: ambos recebem a condicional e voltam à sociedade, mas Brooks, como já dito alguns parágrafos atrás, via Shawshank como o seu lar, e uma vez fora dele, perde sua identidade, e vivendo com medo, prefere o suicídio. Red também recebe a condicional, depois de duas tentativas frustradas em quarenta anos de pena – o discurso dele diante dos avaliadores é comovente: ele nem se importa mais se vai ser aprovado ou não, o importante é que se pudesse voltar atrás e aconselhar o jovem que um dia foi, nunca teria perdido toda a sua vida no presídio. Condicional liberada, ele sente o mesmo medo que Brooks sentiu, mas só não se mata porque Andy deu a Red o seu sonho: viver livre numa cidadezinha mexicana à margem do Pacífico...

Brooks: fora da prisão que considera um lar, ele se suicida.


“Dizem que o Pacífico nos faz esquecer”, disse Andy à Red. E é para lá que Red vai. Sem medo, com o vento no rosto, ele reencontra o amigo na praia para, ao lado dele, viver o sonho da Liberdade. Se é preciso se perder para se encontrar, para Red e Andy isso foi realidade, não questão filosófica... E assim, com os dois livres e prestes a relizar seus sonhos, termina um filme maravilhoso, que invariavelmente nos leva às lágrimas, porque nos faz lembrar o quanto somos abençoados por nunca ter perdido a esperança, e nem o poder de sonhar. Um clássico que merece estar na coleção de todos os cinéfilos de plantão, para nos lembrar disso sempre. E para sempre.

Andy na cena mais lembrada do filme: livre da sujeira de Shawshank,
ele se purifica na chuva que representa sua liberdade. Clássico!


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