Nada na Vida é tão
certo que não possa ser mudado. Basta querer.
Capa do livro, da Editora Companhia das Letras. |
“Sob a lua, num velho
trapiche abandonado...” é a senha para entrar no universo de Jorge
Amado. Um dos maiores escritores baianos, está, ao lado de José
Lins do Rego, representando o Nordeste no cenário literário
brasileiro, retratando in loco sua terra em todos os ângulos.
“Capitães da Areia”, publicado em 1937, tem como mote os menores
abandonados. Sim, minha gente. Passam-se os anos e a questão das
crianças de rua continua quase que inalterada, revelando a
ineficiência do Poder Público no que tange ao tema. Seja o governo
que for, essa e tantas outras questões já parecem ter se tornado de
estimação, tamanho é o tempo que permanece em voga. Tanto é
verdade que “Capitães da Areia” poderia muito bem se passar nos
dias atuais, e não no começo do Século XX. Notem: um romance
escrito na juventude do século passado. E vejam em que ano e século
estamos agora!
Um romance onde Jorge
Amado deixou mais explícita as suas convicções políticas, somado
ao olhar clínico e exato do autor, que chegou a dormir no trapiche
com os meninos de rua, é claro que chamaria a atenção daqueles que
pintavam um Brasil pouco conhecido, longe da realidade. O Estado
Novo, como ficou conhecida a ditadura de Getúlio Vargas, recolheu
vários volumes e os queimou em praça pública, passando a perseguir
Amado. Obviamente, de nada adiantou tal disparate: o romance das
aventuras de Pedro Bala e dos Capitães da Areia, que roubava e
aplicava golpes na cidade de Salvador, é um dos mais populares do
escritor baiano, e não raro é o livro que apresenta o mundo
literário a novos leitores.
Jorge Amado, autor do romance, e sua inseparável máquina de escrever. |
Como já mencionado, o
romance é centrado num grupo de meninos de rua que se auto-intitula
Capitães da Areia, chefiados por Pedro Bala, o mais velho deles,
garoto de uns 15 anos. Vivem de furtos e golpes, desafiando a
polícia, agindo com inteligência e sagacidade. Claro que muitas
vezes são “contratados” por adultos para realizarem “negócios”
para lá de suspeitos, mas também encontram a compaixão na figura
do padre José Pedro, sacerdote que alimenta a esperança de
regenerar aquelas crianças. Mas, como diz o narrador a certa altura,
ali no trapiche as crianças vivem “sem pai, sem mãe, sem mestre”
porque não tiveram outra escolha. Eis a visão de Sem-Pernas, um dos
meninos, deficiente físico, sobre a vida que levavam, da falta de
perspectivas, da necessidade de atenção e amor daqueles que apenas
lutavam para sobreviver, perdendo cedo a inocência da infância:
“Tinha de si apenas a liberdade de correr as ruas. Levavam vida
nem sempre fácil, arranjando o que comer e o que vestir, ora
carregando uma mala, ora furtando carteiras e chapéus, ora ameaçando
homens, por vezes pedindo esmola. (...) O Sem-Pernas ficava pensando.
E achava que a alegria daquela liberdade era pouca para a desgraça
daquela vida. (...) Todos procuravam um carinho, qualquer coisa fora
daquela vida (...) E saiu correndo pelo areal, correndo sem fito,
fugindo de sua angústia.” (p.46-47)
E dentre tantas coisas
simbólicas presentes no livro, a mais significativa, na minha
opinião, é a cena do carrossel: ali, as crianças esquecem a vida
difícil, e voltam a ser o que são por breves momentos. Velho e
desbotado, o carrossel parece representá-los: um dia tinham família,
casa, comida, e um dia, viram-se sem nada. O carrossel também teve
seus dias de glória, divertindo as crianças ricas das capitais,
agora jazia numa cidadezinha do interior. Mesmo assim, não perdera o
fascínio que exercia sobre as pessoas, sendo capaz até mesmo de
acalmar a fúria de Lampião, como conta orgulhosamente aos meninos o
dono do brinquedo. Quando Volta-Seca, um dos companheiros mais
próximos de Pedro Bala, e também um dos mais violentos, se vê
diante de um, ao som de uma valsa, ele e todos os demais se deixam
levar pelo sentimento da esperança, do sonho bom que não queremos
que acabe. “Que importa que seja velho, roto e de cores
apagadas?” pergunta o narrador. “Então a luz da Lua se
estendeu sobre todos... E era uma valsa velha e triste, já esquecida
por todos os homens da cidade.” (p.66)
Os Capitães da Areia, ilustração presente na edição da Editora Record. |
É bom que se deixe
claro que há várias visões sobre a marginalização. Jorge Amado
era um mestre em descrever situações onde os personagens se vêem
de maneira adversa ao que a sociedade impõe como aceitável. A
Igreja Católica, por exemplo, não foi poupada de críticas: na
figura do padre José Pedro, Jorge Amado aponta os defeitos das
figuras que o cercam: de origem humilde e sem talento para a
retórica, mas cheio de Fé e vocação, padre José Pedro agrada aos
Capitães da Areia – principalmente a Pirulito – porém sofre com
o preconceito e a hipocrisia de seus superiores. Ele encontra mais
compreensão nos meninos do areal do que dentro da sacristia ou mesmo
entre as que se dizem fiéis.
Mas voltemos a Pedro
Bala. Apesar da pouca idade, comanda os meninos com a autoridade de
um adulto. Órfão de pai e mãe, filho de um estivador que fora
assassinado pela polícia durante uma greve, cedo desperta um
espírito de luta, uma vontade de mudar o destino muitas vezes
injusto imposta pela sociedade opressora. Ele é, ao mesmo tempo,
pai, irmão, amigo, chefe, juiz. Os Capitães da Areia o respeitam,
seguem suas regras; a sociedade o teme, para ela é apenas mais
delinquente como tantos; os estivadores vêem nele um futuro líder
da luta pelos direitos dos trabalhadores. Todos esperam algo de Pedro
Bala, para o bem ou para o mal. A dualidade que reside na alma humana
é explorada de forma crua pelo autor, alternando cenas chocantes com
outras de puro lirismo. Na época em que o romance foi escrito, se
falava muito na influência do ambiente na vida das pessoas. O
Determinismo era, por assim dizer, uma sentença: não havia outra
explicação para a pobreza, para a marginalidade, senão que a
pessoa se tornava quem era por sua vivência em determinado ambiente.
Mas se isso tivesse realmente um fundo de verdade, não haveria a
possibilidade de mudança. Professor, único dos Capitães da Areia
que sabe ler e escrever, com talento para o desenho e a pintura,
vislumbra tal chance quando retrata com giz um homem rico que,
impressionado, deixa um cartão e sua piteira com o menino, que junto
de Pedro, sai correndo para não ser pego pelo guarda.
“– Lhe roubaram
alguma coisa, senhor?
– Não. Por quê?
(...) Eram duas crianças... Por sinal que uma com maravilhosa
inclinação para a pintura.(...)
– Ladronas, isso
são... Tenha cuidado, senhor, quando eles se aproximarem do senhor.
Veja se não lhe falta nada... (...)
– Assim que se
perdem os grandes artistas. Que pintor não seria!” (p.142)
Ou seja, talentos e
futuros brilhantes se perdem todos os dias porque a sociedade só
enxerga aquilo que determina. Para o guarda, na sua visão estreita,
ladrão é ladrão até o tutano dos ossos. Para o homem, mais vivido
e com experiência de mundo, e de “mente mais aberta”, o menino
seria um excelente artista, digno dos grandes salões. A questão
toda é que, quem pensa diferente da maioria acaba sendo taxado de
ingênuo, bobo... Por isso mesmo que Professor afirma para Pedro uma
verdade que a sociedade tenta negar com todas as forças, mas que
pratica todos os dias...
“– O homem
parece que era bem capaz de ajudar a tu ser um pintor... (...)
– Deixa de se
besta, Bala. Tu bem sabe que do meio da gente só pode sair ladrão...
Quem é que quer saber da gente? (...)” (p.142)
É claro que para Jorge
Amado isso de influência do meio inexiste – uma vida digna é
direto de todos, a sociedade é quem impõe o cabresto sobre aqueles
que considera inferiores, para assim se manter numa espécie de
Olimpo, longe daqueles que explora infinitamente. Prova disso é a
epidemia de varíola que passa a assolar a cidade: enquanto os ricos
são tratados em casa, os pobres são levados ao lazareto para
morrerem. Boa-Vida e Almiro adoecem de alastrim, versão mais branda
da varíola, e vão para tal lugar; só o primeiro retorna.
“– Como era o
lazareto? (...)
– Ninguém sabe
dizer, não. É uma coisa por demais... Uma nojeira. A gente quando
entra é igual um que entra no caixão.” (p. 161-162)
Para os pobres, só
resta rezar, na esperança de que o futuro seja melhor – que o
destino deles mude. Seja na figura do padre José Pedro ou na
mãe-de-santo, a população oprimida só encontra consolo na oração.
Chega a ser revoltante ler o momento em que o padre José Pedro é
duramente criticado por seus superiores apenas por tentar salvar a
vida de um menino de rua doente. Apenas por praticar a compaixão,
tão promovida no meio cristão! Quanto aos meninos, sobra apenas
voltar à vida “normal”...
E então, aparece
Dora... Órfã de pai e mãe, mortos pela varíola, com um irmão
pequeno, sem conseguir emprego, conhece João Grande e Professor, que
penalizados, a levam para o trapiche. Depois de uma discussão
acalorada, Pedro a deixa ficar, junto com o irmão. Dali por diante,
os Capitães da Areia encontram em Dora a mãe que perderam, tal como
os Meninos Perdidos com Wendy, na clássica história de Peter Pan.
Para Dora, aqueles meninos são seus salvadores, seus iguais, seus
filhinhos. Um sentimento diferente nasce no coração de cada menino
do areal – Dora é um bálsamo de carinho maternal, de que tanto
sentem falta. Só Pedro Bala e Professor a amam diferente. E é para
Pedro que Dora dedica seu coração. Mas infelizmente, isso durará
pouco. Pedro Bala e os Capitães da Areia são pegos ao tentarem
assaltar um palacete. O chefe consegue fazer com que o grupo fuja,
mas ele e Dora são presos. Pedro vai para o reformatório, Dora para
o orfanato. O diretor do reformatório é o tipo de pessoa que
acredita que uma surra de chicote, pontapés e socos regeneram um
marginal, mas tudo o que consegue é alimentar em Pedro a ideia da
liberdade, do direito a uma vida mais digna. O diretor é o legítimo
representante da sociedade opressora que cria seus próprios males. O
reformatório é horrível. E pensar que os jornais elogiam o
estabelecimento como sendo “uma grande família”! Quanta
hipocrisia!
Já Dora...
Infelizmente, a personagem não suporta tamanho sofrimento, e após
ser resgatada do orfanato pelos amigos numa cena emocionante, morre
nos braços de Pedro Bala. Para o chefe dos Capitães da Areia, a
menina amada se transforma em estrela, destino dos heróis; para os
demais, a morte dela é o ponto de ruptura: um a um, os meninos mais
velhos deixam o grupo, uma espécie de ação simbólica do fim da
infância, que as crianças nunca tiveram. Sem-Pernas, para fugir de
uma perseguição policial, se joga do Elevador Lacerda, “como a um
trapezista de circo”; Gato vai embora da cidade, mas não deixa sua
“carreira” de malandro; Volta-Seca se junta ao bando de Lampião
e se torna um cangaceiro, e dos mais cruéis. O único que “muda de
vida”, por assim dizer, é Professor, que se torna pintor de
renome, com seus quadros sempre retratando a vida difícil das
crianças de rua, mas sempre zeladas por uma figura angelical
feminina, de rosto afogueado. Quanto a Pedro Bala...
A vocação política
do menino aflora e ele se torna um dos principais líderes do
movimento trabalhista, na época duramente reprimido pela ditadura de
Vargas. Seguindo os passos do pai, Pedro Bala, já homem feito, se
torna o herói dos pobres da Bahia, nunca esquecendo a vida de menino
do areal e de sua Dora, virando alvo daqueles que tem o poder nas
mãos. Fugitivo – já que, naquela época, a perseguição aos
líderes de movimentos sociais era bem comum, e também a seus
apoiadores, vide o próprio Jorge Amado –, o ex-menino de rua,
eterno Capitão da Areia, sempre será acolhido por aqueles que luta
– o povo, que diariamente luta pelo pão de cada dia não apenas
com o suor do próprio rosto, mas também com seu sangue e suas
lágrimas, sob a lua ou sob o sol, num velho trapiche abandonado ou
numa casinha humilde... Porque, enquanto uns fazem de tudo para
manter a desigualdade no “país do futuro”, outros apenas querem
a própria dignidade. E dignidade não existe sem igualdade.
Jorge Amado, realmente,
era único em seu estilo de expor o que tantos queriam esconder.
Pena que Deus jogou a forma fora... Muita gente por aí precisa de um
pouco de Amado para aprender o que é lutar pelo que acredita, não
apenas “seguir o bonde”. Tornar-se, de fato, capitães do próprio Destino.
Um dia, quem sabe, isso
se aprende...
As várias edições do livro de Jorge Amado, um dos mais populares romances do escritor. (Fonte: Cantina do Livro) |
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