segunda-feira, 9 de março de 2015

CAPITÃES DO PRÓPRIO DESTINO – Sobre “Capitães da Areia”, de Jorge Amado

Nada na Vida é tão certo que não possa ser mudado. Basta querer.


Capa do livro, da Editora Companhia das Letras.



“Sob a lua, num velho trapiche abandonado...” é a senha para entrar no universo de Jorge Amado. Um dos maiores escritores baianos, está, ao lado de José Lins do Rego, representando o Nordeste no cenário literário brasileiro, retratando in loco sua terra em todos os ângulos. “Capitães da Areia”, publicado em 1937, tem como mote os menores abandonados. Sim, minha gente. Passam-se os anos e a questão das crianças de rua continua quase que inalterada, revelando a ineficiência do Poder Público no que tange ao tema. Seja o governo que for, essa e tantas outras questões já parecem ter se tornado de estimação, tamanho é o tempo que permanece em voga. Tanto é verdade que “Capitães da Areia” poderia muito bem se passar nos dias atuais, e não no começo do Século XX. Notem: um romance escrito na juventude do século passado. E vejam em que ano e século estamos agora!

Um romance onde Jorge Amado deixou mais explícita as suas convicções políticas, somado ao olhar clínico e exato do autor, que chegou a dormir no trapiche com os meninos de rua, é claro que chamaria a atenção daqueles que pintavam um Brasil pouco conhecido, longe da realidade. O Estado Novo, como ficou conhecida a ditadura de Getúlio Vargas, recolheu vários volumes e os queimou em praça pública, passando a perseguir Amado. Obviamente, de nada adiantou tal disparate: o romance das aventuras de Pedro Bala e dos Capitães da Areia, que roubava e aplicava golpes na cidade de Salvador, é um dos mais populares do escritor baiano, e não raro é o livro que apresenta o mundo literário a novos leitores.

Jorge Amado, autor do romance,
 e sua inseparável máquina de escrever.

Como já mencionado, o romance é centrado num grupo de meninos de rua que se auto-intitula Capitães da Areia, chefiados por Pedro Bala, o mais velho deles, garoto de uns 15 anos. Vivem de furtos e golpes, desafiando a polícia, agindo com inteligência e sagacidade. Claro que muitas vezes são “contratados” por adultos para realizarem “negócios” para lá de suspeitos, mas também encontram a compaixão na figura do padre José Pedro, sacerdote que alimenta a esperança de regenerar aquelas crianças. Mas, como diz o narrador a certa altura, ali no trapiche as crianças vivem “sem pai, sem mãe, sem mestre” porque não tiveram outra escolha. Eis a visão de Sem-Pernas, um dos meninos, deficiente físico, sobre a vida que levavam, da falta de perspectivas, da necessidade de atenção e amor daqueles que apenas lutavam para sobreviver, perdendo cedo a inocência da infância: “Tinha de si apenas a liberdade de correr as ruas. Levavam vida nem sempre fácil, arranjando o que comer e o que vestir, ora carregando uma mala, ora furtando carteiras e chapéus, ora ameaçando homens, por vezes pedindo esmola. (...) O Sem-Pernas ficava pensando. E achava que a alegria daquela liberdade era pouca para a desgraça daquela vida. (...) Todos procuravam um carinho, qualquer coisa fora daquela vida (...) E saiu correndo pelo areal, correndo sem fito, fugindo de sua angústia.” (p.46-47)

E dentre tantas coisas simbólicas presentes no livro, a mais significativa, na minha opinião, é a cena do carrossel: ali, as crianças esquecem a vida difícil, e voltam a ser o que são por breves momentos. Velho e desbotado, o carrossel parece representá-los: um dia tinham família, casa, comida, e um dia, viram-se sem nada. O carrossel também teve seus dias de glória, divertindo as crianças ricas das capitais, agora jazia numa cidadezinha do interior. Mesmo assim, não perdera o fascínio que exercia sobre as pessoas, sendo capaz até mesmo de acalmar a fúria de Lampião, como conta orgulhosamente aos meninos o dono do brinquedo. Quando Volta-Seca, um dos companheiros mais próximos de Pedro Bala, e também um dos mais violentos, se vê diante de um, ao som de uma valsa, ele e todos os demais se deixam levar pelo sentimento da esperança, do sonho bom que não queremos que acabe. “Que importa que seja velho, roto e de cores apagadas?” pergunta o narrador. “Então a luz da Lua se estendeu sobre todos... E era uma valsa velha e triste, já esquecida por todos os homens da cidade.” (p.66)

Os Capitães da Areia, ilustração presente
na edição da Editora Record.

É bom que se deixe claro que há várias visões sobre a marginalização. Jorge Amado era um mestre em descrever situações onde os personagens se vêem de maneira adversa ao que a sociedade impõe como aceitável. A Igreja Católica, por exemplo, não foi poupada de críticas: na figura do padre José Pedro, Jorge Amado aponta os defeitos das figuras que o cercam: de origem humilde e sem talento para a retórica, mas cheio de Fé e vocação, padre José Pedro agrada aos Capitães da Areia – principalmente a Pirulito – porém sofre com o preconceito e a hipocrisia de seus superiores. Ele encontra mais compreensão nos meninos do areal do que dentro da sacristia ou mesmo entre as que se dizem fiéis.

Mas voltemos a Pedro Bala. Apesar da pouca idade, comanda os meninos com a autoridade de um adulto. Órfão de pai e mãe, filho de um estivador que fora assassinado pela polícia durante uma greve, cedo desperta um espírito de luta, uma vontade de mudar o destino muitas vezes injusto imposta pela sociedade opressora. Ele é, ao mesmo tempo, pai, irmão, amigo, chefe, juiz. Os Capitães da Areia o respeitam, seguem suas regras; a sociedade o teme, para ela é apenas mais delinquente como tantos; os estivadores vêem nele um futuro líder da luta pelos direitos dos trabalhadores. Todos esperam algo de Pedro Bala, para o bem ou para o mal. A dualidade que reside na alma humana é explorada de forma crua pelo autor, alternando cenas chocantes com outras de puro lirismo. Na época em que o romance foi escrito, se falava muito na influência do ambiente na vida das pessoas. O Determinismo era, por assim dizer, uma sentença: não havia outra explicação para a pobreza, para a marginalidade, senão que a pessoa se tornava quem era por sua vivência em determinado ambiente. Mas se isso tivesse realmente um fundo de verdade, não haveria a possibilidade de mudança. Professor, único dos Capitães da Areia que sabe ler e escrever, com talento para o desenho e a pintura, vislumbra tal chance quando retrata com giz um homem rico que, impressionado, deixa um cartão e sua piteira com o menino, que junto de Pedro, sai correndo para não ser pego pelo guarda.

“– Lhe roubaram alguma coisa, senhor?
Não. Por quê? (...) Eram duas crianças... Por sinal que uma com maravilhosa inclinação para a pintura.(...)
Ladronas, isso são... Tenha cuidado, senhor, quando eles se aproximarem do senhor. Veja se não lhe falta nada... (...)
Assim que se perdem os grandes artistas. Que pintor não seria!” (p.142)

Ou seja, talentos e futuros brilhantes se perdem todos os dias porque a sociedade só enxerga aquilo que determina. Para o guarda, na sua visão estreita, ladrão é ladrão até o tutano dos ossos. Para o homem, mais vivido e com experiência de mundo, e de “mente mais aberta”, o menino seria um excelente artista, digno dos grandes salões. A questão toda é que, quem pensa diferente da maioria acaba sendo taxado de ingênuo, bobo... Por isso mesmo que Professor afirma para Pedro uma verdade que a sociedade tenta negar com todas as forças, mas que pratica todos os dias...

“– O homem parece que era bem capaz de ajudar a tu ser um pintor... (...)
Deixa de se besta, Bala. Tu bem sabe que do meio da gente só pode sair ladrão... Quem é que quer saber da gente? (...)” (p.142)

É claro que para Jorge Amado isso de influência do meio inexiste – uma vida digna é direto de todos, a sociedade é quem impõe o cabresto sobre aqueles que considera inferiores, para assim se manter numa espécie de Olimpo, longe daqueles que explora infinitamente. Prova disso é a epidemia de varíola que passa a assolar a cidade: enquanto os ricos são tratados em casa, os pobres são levados ao lazareto para morrerem. Boa-Vida e Almiro adoecem de alastrim, versão mais branda da varíola, e vão para tal lugar; só o primeiro retorna.

“– Como era o lazareto? (...)
Ninguém sabe dizer, não. É uma coisa por demais... Uma nojeira. A gente quando entra é igual um que entra no caixão.” (p. 161-162)

Para os pobres, só resta rezar, na esperança de que o futuro seja melhor – que o destino deles mude. Seja na figura do padre José Pedro ou na mãe-de-santo, a população oprimida só encontra consolo na oração. Chega a ser revoltante ler o momento em que o padre José Pedro é duramente criticado por seus superiores apenas por tentar salvar a vida de um menino de rua doente. Apenas por praticar a compaixão, tão promovida no meio cristão! Quanto aos meninos, sobra apenas voltar à vida “normal”...

E então, aparece Dora... Órfã de pai e mãe, mortos pela varíola, com um irmão pequeno, sem conseguir emprego, conhece João Grande e Professor, que penalizados, a levam para o trapiche. Depois de uma discussão acalorada, Pedro a deixa ficar, junto com o irmão. Dali por diante, os Capitães da Areia encontram em Dora a mãe que perderam, tal como os Meninos Perdidos com Wendy, na clássica história de Peter Pan. Para Dora, aqueles meninos são seus salvadores, seus iguais, seus filhinhos. Um sentimento diferente nasce no coração de cada menino do areal – Dora é um bálsamo de carinho maternal, de que tanto sentem falta. Só Pedro Bala e Professor a amam diferente. E é para Pedro que Dora dedica seu coração. Mas infelizmente, isso durará pouco. Pedro Bala e os Capitães da Areia são pegos ao tentarem assaltar um palacete. O chefe consegue fazer com que o grupo fuja, mas ele e Dora são presos. Pedro vai para o reformatório, Dora para o orfanato. O diretor do reformatório é o tipo de pessoa que acredita que uma surra de chicote, pontapés e socos regeneram um marginal, mas tudo o que consegue é alimentar em Pedro a ideia da liberdade, do direito a uma vida mais digna. O diretor é o legítimo representante da sociedade opressora que cria seus próprios males. O reformatório é horrível. E pensar que os jornais elogiam o estabelecimento como sendo “uma grande família”! Quanta hipocrisia!

Já Dora... Infelizmente, a personagem não suporta tamanho sofrimento, e após ser resgatada do orfanato pelos amigos numa cena emocionante, morre nos braços de Pedro Bala. Para o chefe dos Capitães da Areia, a menina amada se transforma em estrela, destino dos heróis; para os demais, a morte dela é o ponto de ruptura: um a um, os meninos mais velhos deixam o grupo, uma espécie de ação simbólica do fim da infância, que as crianças nunca tiveram. Sem-Pernas, para fugir de uma perseguição policial, se joga do Elevador Lacerda, “como a um trapezista de circo”; Gato vai embora da cidade, mas não deixa sua “carreira” de malandro; Volta-Seca se junta ao bando de Lampião e se torna um cangaceiro, e dos mais cruéis. O único que “muda de vida”, por assim dizer, é Professor, que se torna pintor de renome, com seus quadros sempre retratando a vida difícil das crianças de rua, mas sempre zeladas por uma figura angelical feminina, de rosto afogueado. Quanto a Pedro Bala...

A vocação política do menino aflora e ele se torna um dos principais líderes do movimento trabalhista, na época duramente reprimido pela ditadura de Vargas. Seguindo os passos do pai, Pedro Bala, já homem feito, se torna o herói dos pobres da Bahia, nunca esquecendo a vida de menino do areal e de sua Dora, virando alvo daqueles que tem o poder nas mãos. Fugitivo – já que, naquela época, a perseguição aos líderes de movimentos sociais era bem comum, e também a seus apoiadores, vide o próprio Jorge Amado –, o ex-menino de rua, eterno Capitão da Areia, sempre será acolhido por aqueles que luta – o povo, que diariamente luta pelo pão de cada dia não apenas com o suor do próprio rosto, mas também com seu sangue e suas lágrimas, sob a lua ou sob o sol, num velho trapiche abandonado ou numa casinha humilde... Porque, enquanto uns fazem de tudo para manter a desigualdade no “país do futuro”, outros apenas querem a própria dignidade. E dignidade não existe sem igualdade.

Jorge Amado, realmente, era único em seu estilo de expor o que tantos queriam esconder. Pena que Deus jogou a forma fora... Muita gente por aí precisa de um pouco de Amado para aprender o que é lutar pelo que acredita, não apenas “seguir o bonde”. Tornar-se, de fato, capitães do próprio Destino.


Um dia, quem sabe, isso se aprende...

As várias edições do livro de Jorge Amado,
um dos mais populares romances do escritor.
(Fonte: Cantina do Livro)

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