Os
relacionamentos virtuais e a quase profecia de Nora Ephron
Pode
reparar: hoje em dia, quase ninguém utiliza o celular para ligações.
Duvido que alguém saiba responder o que significam as siglas DDD e DDI. Tudo
por causa da internet. É Facebook, Twitter, Whatsapp, um amontoado
de aplicativos virtuais que nos fazem esquecer que a principal função
de um telefone móvel é realizar e atender chamadas. Quase ninguém
mais vive sem internet, neste mundo inteiramente alicerçado em dados
móveis, wi-fi, banda larga, 3G, 4G ou sabe Deus quantos G's existem
hoje em dia. Mas, lá pelo fim da década de 1990, para que você
fosse “plugado” no mundo virtual, era necessário três coisas:
um computador, um telefone fixo e um provedor de internet… discada.
"Mensagem para você" |
Quem
viveu a época, pode contar: o som da conexão discada, era a trilha
sonora da nossa ansiedade, como bem mostra os personagens Kathleen
Kelly e Joe Fox, interpretados respectivamente por Meg Ryan e Tom
Hanks, logo nas primeiras cenas de “Mensagem para Você”, de Nora
Ephron. Numa era pré-qualquer-rede-social, quem reinava no
ciberespaço eram os chats, ou salas de bate-papo. Um bando de
desconhecidos reunidos sob um tema específico, que variava entre
idades e assuntos – a sala “Solteiros” era disputadíssima! –
e que tomava horas, horas, HORAS de conversa, pública ou
reservadamente, com quantas pessoas você quisesse. Uma profusão de
nicknames – apelidos – criativos, e alguns até ridículos,
rendeu boas amizades, debates e… namoros. Nora Ephron soube como
ninguém, numa época em que a internet ainda engatinhava, captar o
impacto que a web causaria na vida das pessoas, com destaque aos
relacionamentos pessoais, principalmente os amorosos. Foi quase uma
profecia! Qual espectador não se identifica com Kathleen e Joe em
meio à troca de e-mails e mensagens instantâneas? Qualquer
semelhança com os faces e whatsapps da vida só demonstra o quão
certa Nora Ephron estava quando lançou o filme, já quase na virada do
século.
Kathleen
Kelly é dona de uma pequena loja de livros infantis, a “The Shop
Around The Corner” (“A Loja da Esquina”, numa tradução
literal), mora num apartamento charmoso e aconchegante no Upper West
Side, conhecido bairro de Nova York, e namora Frank Navasky,
colunista de um jornal local que é totalmente avesso às inovações
tecnológicas. Mal sabe o rapaz que a namorada se rendeu a novidade
do momento, a internet, e que ainda por cima, trava correspondência
virtual com um homem que conheceu numa sala de bate-papo, o senhor
“NY152”. Todos os dias, pela manhã, depois de Frank sair para o
trabalho, Kathleen corre para o laptop, conecta a internet, ouve
aquele som característico da conexão discada na maior expectativa
até ouvir uma voz eletrônica dizer you've
got mail
(no Brasil, dependendo do provedor, a voz dizia “mensagem para
você”, ou “você tem mensagem” – no filme, a internet é da
AOL, lembra dela?), para então ler o correio eletrônico enviado
pelo amigo virtual, que conta sobre alguma amenidade do cotidiano,
como o cachorro. Do outro lado do bairro, temos Joe Fox, herdeiro de
um conglomerado de livrarias, a “Fox Books”, que mantém uma
rotina semelhante a de Kathleen, travando troca de mensagens virtuais
com a senhorita “Shopgirl” e sua paixão pela primavera
novaiorquina. Tão longe e, ao mesmo tempo, tão perto, ambos não se
conhecem pessoalmente, e mesmo morando no mesmo bairro, sequer se
cruzam. Mas isto está prestes a mudar.
Numa era pré-Facebook... Quem reinava na internet eram os chats. Ou o ICQ. |
A
“Fox Books” de Joe Fox abrirá uma filial na mesma rua da “The
Shop Around The Corner” de Kathleen Kelly. E a primeira vez que os
dois se cruzam, justamente na loja dela, devo dizer, não é nada
romântica: não há insigth algum entre Kate e Joe, apenas uma dona
de livraria confiante na fidelidade de sua clientela diante da ameaça
de tamanha concorrência que, prudentemente, Joe omite fazer parte.
Claro que isso renderá mal entendidos! E o que é mais engraçado, é
que Kathleen, a “Shopgirl”, só revela seus verdadeiros
pensamentos com o amigo “NY152”, sem saber que ele é
justamente Joe Fox!
Obviamente que ambos não falam no que trabalham, apenas citam que
tem negócios – aliás, isso rende cenas para lá de inusitadas. Se
em “Sintonia de Amor”, um dos muitos filmes famosos de Nora
Ephron (senão o mais), a trama girava em torno de uma cena
inesquecível do clássico “Tarde Demais Para Esquecer”, em
“Mensagem Para Você” a disputa entre Kate e Joe tem como ponto
de partida uma frase do filme “O Poderoso Chefão”. Esqueça Sun
Tzu e sua Arte da Guerra, aposente o monge e o executivo. A bíblia
dos negócios é a Família Corleone. “'O Poderoso Chefão' tem a
resposta para todas as perguntas”, diz Joe “NY152” para Kate
“Shopgirl”, “e a resposta para a sua é 'vá para a arena',
'Não é pessoal, são só negócios'”. (e o interessante é que,
realmente, “O Poderoso Chefão” tem dessa!). E Kate, claro, leva
a citação a sério, sem nem imaginar que a pessoa que ela quer
derrubar é a mesma que roubou o seu coração.
"Vá para a arena!", conselho que Kathleen leva muito à sério na guerra contra Joe. |
Uma
coisa que acho muito providencial nos filmes de Nora Ephron – que
infelizmente faleceu em 2012, vítima de câncer – é a ironia que
acompanha a evolução do relacionamento amoroso dos protagonistas.
Nada ali e fácil, se apaixonar, amar, assumir tais sentimentos por
alguém é uma jornada mais difícil que chegar ao topo do Oiapoque
com o 4G funcionando. A internet é a válvula de escape dos
personagens, não porque a vida de ambos é sem graça, mas porque
eles se sentem livres para extravasar os sentimentos que represam na
vida real. Tanto Joe quanto Kathleen vivem relacionamentos frios;
Frank, por exemplo, é mais amigo da protagonista do que namorado, e
a namorada de Joe, bem… é um porre! Uma viciada em trabalho que só
pensa em se dar bem, e que não se importa com ninguém a não ser
ela mesma. A ironia reside no fato de que, mesmo se correspondendo há
meses, Joe e Kathleen não se dão contam de que se amam; o que era
apenas uma troca banal de e-mails entre os seres virtuais “NY152”
e “Shopgirl” vai se desenrolando para um sentimento mais forte a
medida que as pessoas reais por trás dos nickames cultivam a
antipatia um pelo outro. Quando Joe descobre que a “Shopgirl” é
Kate, num primeiro momento, ele se deixa levar pela frustração e,
sem contar a verdade, provoca-a até ela perder a paciência e
revidar de forma cruel – seguindo o conselho que ele mesmo deu para
a moça. Joe sente as palavras de Kate como a um tapa, e vai embora
dividido, enquanto ela sente que fez algo muito errado e se arrepende
profundamente. Sem ter com quem desabafar, ela liga o computador, e
envia um e-mail para “NY152” contando o ocorrido, descrevendo
seus reais sentimentos. É nesse momento que Joe percebe que ama Kate
de verdade, não por ela ser “Shopgirl”, a garota que ama a
primavera, mas por ser Kathleen Kelly, a dona da “The Shop Around
The Corner” que só deseja manter o negócio de sua falecida mãe,
no lugar onde sempre viveu seus melhores momentos. Mas como mostrar
isso para o amor de sua vida? Como afirmei antes, nada é assim tão
fácil, mas para alguém tão esperto quanto Joe, convencer sua amada
de que o homem real é melhor que o virtual não exigirá um esforço
hercúleo, apenas uma paciência de Jó – e claro, com a merecida
recompensa no final.
"Não chore, Shopgirl." |
Trazendo
para os dias de hoje, “Mensagem Para Você” é bem datado, com
alguns detalhes do ciberespaço que já não têm mais tanto apelo ou
se tornou obsoleto. Com as redes sociais, a vida virtual é
praticamente parte integrante da real, ainda mais quando as amizades
criadas na web seguem firmes por anos. Hoje em dia é muito difícil
esconder sua personalidade na rede, como faz Joe em certos momentos
do filme; a internet evoluiu bastante, os perfis virtuais
praticamente exibem quem você é para quem quiser conhecê-lo, e
apesar de algumas vezes surgirem perfis “fakes”, falsos,
a realidade, frequentemente, invade o mundo virtual, sempre mostrando
que viver de verdade é sempre melhor do que vegetar na frente da
tela do computador, tablet ou smartphone. Apesar de ser difícil se
desconectar, não devemos substituir a quem realmente somos por quem
gostaríamos de ser, tentando passar a mensagem errada só para
atrair mais admiradores, mais amigos, mais apaixonados. Kathleen é
honesta consigo mesma do começo ao fim, e é isso que encanta Joe,
cujo bom humor e compreensão fazem a “Shopgirl” sonhar acordada
longe do computador. Como já dito neste parágrafo, a vida
real é mais interessante que a virtual, simplesmente porque nos dá
a chance de crescer, amadurecer através das experiências que ela
proporciona. Isso não quer dizer que, nos dias de hoje, a internet
não seja essencial; apenas não deveria nos fazer esquecer de viver. Substituir a Vida.
Claro que a internet tem suas vantagens. O próprio filme mostra isso,
apesar disso ficar em segundo plano devido a própria época em que
foi lançado, com a web ainda vista como novidade. “Mensagem Para
Você”, nas entrelinhas, nos lembra que o Amor é inevitável e se
faz presente em vários momentos, como acontece com Kathleen e Joe,
revelando que, quando o coração está aberto para tamanho
sentimento, não importa o espaço que separe as duas pessoas, sempre
haverá algo que as unirá. É só ter a coragem de ir para a arena e
lutar pelo que acredita e, principalmente, por quem ama – afinal,
se o amor é verdadeiro, nenhuma luta é vã de fato. E essa é a
mensagem que Nora Ephron sempre enviou para os espectadores, em todos
os seus filmes. Porém, em nenhum isso foi tão aparente quanto em
“Mensagem Para Você”… Nenhum Corleone faria melhor!
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