sábado, 30 de abril de 2016

OUTROS ESCRITOS – OPINIÃO: Não precisa desligar o cérebro para assistir telenovela; é um texto como qualquer outro.

Por isso não é isento de interpretação.







 
Há pouco tempo, está no ar na Rede Globo uma telenovela de temática regional, de autoria de Benedito Ruy Barbosa, o mesmo da maravilhosa “Meu Pedacinho de Chão”, de 2014: “Velho Chico”. Seria mais uma entre tantas do autor se não fosse a direção (sem trocadilho) tomada pelo realizador Luiz Fernando Carvalho – que aliás, também dirigiu a produção de dois anos atrás.

A primeira fase da novela tomava como cenário a década de 1970, no auge do movimento tropicalista. À primeira vista, quase todos rasgaram seda para a telenovela e tudo que a torna primorosa. Foi só mudar de fase, para começar o estranhamento. Uma enxurrada de críticas, com gente confusa sobre a época que se passa a novela, sobre a atuação dos atores e tudo o mais. Nem parece o mesmo povo que criticava a Rede Globo por exibir em seu horário das nove horas da noite telenovelas ambientadas no eixo Rio-São Paulo – a última fora desse ambiente foi “Porto dos Milagres”, em 2001. E isso, na minha opinião, mostra que o problema não é o ano ou o lugar em que a história se passa: é a mentalidade de algumas pessoas que, inconscientemente, não abandonam os grandes centros.

Vou tomar como ponto de partida uma cena protagonizada por Zezita Matos, intérprete de Piedade, na última semana. Cansada da rixa entre sua família e a do poderoso Coronel Saruê (papel de Antônio Fagundes), ela foi até a mansão dos de Sá Ribeiro “armada” apenas de uma colher de pau. Muitos não entenderam, e lá se foi a chuva de críticas e chacotas sobre a cena através do Twitter. Fiquei abismada! Nascida e criada no interior do Pará, Região do Tapajós, já vi muita gente enfrentar poderosos usando apenas cordas, as vocais. Um exemplo que me chegou à memória durante a cena foi a Irmã Dorothy Stang, conhecida na Região do Xingu por seu ativismo em defesa do meio ambiente e trabalho junto aos pequenos agricultores. Assassinada em 2005, no momento de sua morte estava “armada” apenas com uma Bíblia. Assim como a missionária, muitos enfrentaram Coronéis Saruês sem pegar em armas, munidos somente de sua coragem e determinação. Reconheço ainda na novela vários elementos e situações que ocorrem no Norte–Nordeste, principalmente no que tange ao enredo político: as falas do Coronel Saruê sobre o futuro de Grotas de São Francisco é praticamente a mesma de muitos de sua laia sobre o futuro da Região do Tapajós, por exemplo, atual centro de uma polêmica sobre um projeto de hidrelétrica que se pretende ser a maior do país e que boa parte da população brasileira desconhece (como ocorre atualmente com o Rio São Francisco). Corrijam-me se estiver errada, mas não seria de certo modo correto afirmar que, enquanto alguns telespectadores dos grandes centros acham ridículo uma senhorinha humilde ir de colher de pau na mão enfrentar o poderoso chefão (que pode mandar matar toda a sua família a qualquer momento), a população de certas regiões do Norte–Nordeste se sintam representadas, justamente porque não há outro meio de defender-se da ambição dos Saruês da vida real a não ser de peito aberto?

Por mais que se trate de um programa de televisão, telenovela não deixa de ser um texto, e por sê-lo, carece de interpretação por parte de quem está diante da tela. Não é preciso desligar o cérebro para assistir tal produção. É ficção, e como tal, se alicerça na verossimilhança, semelhante a verdade. O discurso de Miguel no capítulo de ontem, 29 de abril, foi bem realista ao apontar sobre quem são os maiores atingidos por tais “projetos de desenvolvimento” que visam “reunir meia dúzia de pessoas num quarto com ar condicionado no litoral”. É tão difícil assim assimilar o ponto principal de tal texto? Na minha visão, a trama de Benedito Ruy Barbosa levanta questões que necessitam ser debatidas no atual momento do país. É a oportunidade perfeita, e a audiência deixa escorrer pelas mãos porque prefere falar da atuação de Antonio Fagundes e o figurino dos personagens, com a desculpa de que “é apenas uma novela”. Esquece que o país é enorme, e há sim, lugares como Grotas de São Francisco, parado no tempo, governado por um Saruê que ainda acha que vive numa Capitania Hereditária. Há quem diga que a trama não retrata a realidade brasileira… E querem saber? A afirmativa talvez tenha procedência – afinal, o Norte e o Nordeste só existem para o Brasil quando é conveniente. De outra forma, somos quase sempre vistos como um outro país, quando não um outro mundo.

E isso só aumenta a sensação de que nunca deixamos de estar ao deus-dará. Triste.

5 comentários:

  1. São 500 anos dominando o povo, quem manda não quer perder o poder, quem é submisso não quer abrir os olhos. Ou não têm capacidade para ver. Aí apelam para a chacota, enquanto são espóliados.

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    1. E apelam para a chacota de uma forma que o ridículo no fim são eles, não concorda? E posso te dizer com certeza, enxergar eles enxergam. Mas na visão deles é melhor fazer vitrine do que agir. Prova disso são tantas críticas à produção de Velho Chico, mas quase nenhum comentário sobre o que ela retrata. No fim das contas, tudo se resume a realidade DELES, não a nossa.

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    2. Sempre digo: Novela, embora com realidade expandida, é o retrato da sociedade. Os problemas são discutidos de forma lúdica, é abrir os olhos e crescer.

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  2. Texto digno de ser trabalhado em sala de aula. Parabéns pela análise

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