domingo, 1 de maio de 2016

ALMA PARTIDA – Sobre “O Médico e o Monstro”, de Robert Louis Stevenson

A ideia de que o Bem e o Mal convivem na alma do Homem volta e meia é tema na Literatura Universal. Mas nada foi tão significante quanto o caso de Jekyll e Hyde.



Capa da edição da Editora Nova Fronteira



Em algumas etnias indígenas aqui no Norte do país, existe a crença de que a alma humana possui dois lados, como se fosse uma moeda: um é bom, íntegro; o outro é exatamente o oposto. Por essa crença é que gêmeos não são bem vistos nessas sociedades, por se acreditar que a alma foi “dividida” entre os dois seres, tirando o direito ao livre-arbítrio – como um seria totalmente bom, e o outro totalmente mal, eles não teriam escolha a não ser tornarem-se bênção e maldição. Não tocarei nas polêmicas que envolvem tal crença, apenas foi inevitável para mim não pensar nessa questão enquanto lia “O Médico e o Monstro ou O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde”, uma das mais famosas obras de Robert Louis Stevenson – e uma das mais representativas no universo literário. Quando se fala no dualismo existente na alma humana, impossível não lembrar da teoria de Dr. Jekyll de que “o homem não é verdadeiramente um ser, mas dois”. E tal e qual o Dr. Frankenstein de Mary Shelley, ele não hesita em romper as fronteiras da Ciência para provar sua teoria.

Mas antes de chegar ao fim, vamos aos meios: ao contrário do que as adaptações para o cinema fazem supor, Dr. Jekyll mais parece um estudo de caso do que um personagem. Quem age no romance, a maior parte do tempo, é Mr. Utterson, amigo e advogado do médico, que anda preocupado com o doutor desde que este nomeou um desconhecido, um tal de Mr. Hyde, como seu universal herdeiro. Utterson investiga, procura, bisbilhota, faz o que está ao seu alcance para descobrir quem é a figura que amendronta quem o conhece e surpreende pelas ações nada convencionais, maléficas até. Mesmo a aparência de Hyde é algo difícil de descrever, segundo um desavisado que teve o azar de encontrá-lo numa rua escura e deserta.

Ele não parecia um homem; era mais como alguma força destruidora  (…) me lançou um único olhar, tão feio que comecei a suar. (…) Eu fora tomado de uma profunda aversão por aquele cavalheiro à primeira vista.” (p.7)

“Não é fácil descrevê-lo. Há algo de errado com a sua aparência; algo desagradável, algo positivamente detestável. (…) Deve ter uma deformação, em algum lugar; passa uma forte impressão de deformação, embora eu não saiba identificá-la. É um homem de aparência extraordinária, e no entanto não sou capaz e mencionar uma única característica incomum. (...)” (p.10)


Está claro que o Mr. Hyde do livro não tem muito a ver com o Hyde que nos acostumamos a ver nas adaptações cinematográficas, de uma aparência monstruosa, quase uma figura demoníaca; o personagem não tem nada em seu físico que demonstre algum “desvio”, por assim dizer. O que nos avisa que há, sim, algo de errado, é o INSTINTO dos personagens que cruzam o caminho dele, algo na atitude e no comportamento no notável senhor que faz com que as pessoas imediatamente sejam tomadas pela antipatia. Ele não é como a um psicopata, pois psicopatas sabem disfarçar suas ações e intenções para se passarem por pessoas de bem – Hyde, nem isso. Todo mundo que chega a conhecê-lo tem certeza de que o homem fará alguma coisa de ruim em algum momento, e claro que, pela história se tratar de uma novela, tal suposição não demora a acontecer.

O filme homônimo de 1931.


Um membro do parlamento é assassinado a sangue frio; uma testemunha aponta Hyde como autor do crime. Logo toda a cidade está a procura do sujeito, e Utterson, preocupado que a aparente “ligação” entre Jekyll e Hyde venha a tona e torne o escândalo ainda maior, procura o amigo e o encontra num estado no mínimo esquisito, “aparentando estar gravemente enfermo”.

...Não se levantou para receber o visitante, mas estendeu-lhe a mão fria e lhe deu as boas vindas numa voz mudada.” (p.31)
 
O médico afirma que recebeu uma carta de Hyde, e entrega nas mãos do advogado, para que este faça o que bem entender com a missiva. Claro que não demora para que Mr. Utterson descubra quem é o verdadeiro autor da carta, e isso o deixa ainda mais desconfiado e atormentado.

Tormento. Esta aí uma palavra que bem descreve o enredo. Todos ali são atormentados por algum motivo. Jekyll, por acreditar que a dualidade humana poderia ser separada, vive o tormento de ver sua crença tornar-se realidade e jogá-lo num turbilhão de acontecimentos que esmaga sua paz; Utterson é atormentado por suas dúvidas, mas principalmente por dispor-se a encontrar a resposta para a pergunta que não o deixa dormir: quem é Mr. Edward Hyde? Aliás, essa questão é a “primeira pergunta”, aquela que no começo da história é comparada com o atirar de uma pedra: uma vez lançada no espírito, as consequências são imprevisíveis.

Tenho uma opinião bem definida quanto a fazer perguntas: é um gesto por demais parecido com o dia do julgamento. Fazer uma primeira pergunta é como atirar uma pedra. Nós ficamos sentados em silêncio no alto de um morro, e lá vai a pedra atingindo outras pessoas. Logo aquele sujeito tão afável, o último em que teríamos pensado, é atingido na cabeça em seu próprio quintal, e a família tem que mudar de nome. Não, senhor, essa é uma regra que sigo: quanto mais sinais de problemas vejo, menos perguntas faço.” (p.9)

A procura de respostas levam os personagens à beira de um abismo, onde suas almas são partidas. Utterson, uma vez que descobre a verdade sobre o médico e o monstro, terá que conviver com ela para sempre; Jekyll fica com a pior parte: incapaz de conter Hyde, prefere se esconder, do que enfrentar o resultado de suas ações. Partindo da referência do começo deste texto, ele não tem escolha a não ser tomar para si tanto a benção quanto a maldição, sofrendo com a personificação do dualismo do ser. A libertação de seu lado obscuro, antes satisfatória, tornou-se seu maior pecado, pois as atrocidades cometidas por Hyde não o isentam de culpa, do peso na consciência. Um e outro são dois ao mesmo tempo que um, mas um não existe sem o outro. Resta a Utterson, apenas, ler a confissão de Jekyll e encaixar as peças que ainda faltavam na resposta à pergunta fatal… Quem é Edward Hyde? É Henry Jekyll, e vice-versa.

Robert Louis Stevenson, o autor.


Ao separar o vício da virtude, personificando-o em Hyde, Jekyll, ao meu ver, dispensou o seu direito à escolha. Não existia outro caminho para Hyde a não ser fazer o que Jekyll secretamente tinha vontade, mas que devido às convenções morais, não realizava; o doutor se escondia por trás da máscara de gentleman, delegando ao monstro os sentimentos e ações negativas que procurava sufocar quando Jekyll. Só muito tarde percebeu que Hyde não era um segundo eu, mas alguém com identidade própria, capaz até mesmo de subjugar seu criador. Ao final da narrativa, o médico paga caro por ter sido tão egoísta ao crer que poderia isentar-se de seus erros dividindo-se em dois.

(…) Se eu tivesse encarado minha descoberta com um espírito mais nobre, se tivesse arriscado fazer aquela experiência motivado por aspirações generosas ou piedosas, tudo poderia ser diferente (...)” (p.67)

E é em meio a tantos “se” que percebi que, no fim das contas, “O Médico e o Monstro”, nas entrelinhas, é mais um conto sobre o egoísmo humano do que uma história de horror – afinal, como bem diz a sabedoria popular, o egoísmo é a mãe de todos os vícios.

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