sábado, 11 de junho de 2016

FANTASMAS PESSOAIS – Sobre o filme “Nunca Fui Beijada”

Alguns fantasmas só são exorcizados quando encarados cara a cara. Josie Geller que o diga!







Na década de 1980, John Hughes abriu as portas de Hollywood para as comédias adolescentes ao lançar “Clube dos Cinco”. Desde então, de quando em vez, a indústria cinematográfica insere no mercado uma enxurrada do gênero, e algumas fugiram tanto da proposta original de Hughes que foram jocosamente apelidadas de “besteirol americano” - e a década de 1990 foi recheada de filmes assim, que mais envergonhavam do que faziam rir. Contudo, de todos aqueles filmes, destaco um que realmente tem uma história a contar: “Nunca Fui Beijada”, protagonizada por Drew Barrymore, na retomada de sua carreira.

Não faço segredo, das comédias adolescentes que estrearam nos cinemas na década de 1990 (todos fracos na minha opinião), “Nunca Fui Beijada”, apesar dos pesares tem o melhor enredo original. Josie Geller, uma editora de jornal de 25 anos, recebe o tema de sua tão esperada primeira matéria como repórter: investigar a vida da galera no Ensino Médio. E como fazer isso? Passando-se por uma colegial de dezessete anos. Detalhe: aqui não há nenhuma mágica, somente Josie e sua determinação de ser reconhecida como profissional. Ela tem que agir como adolescente, falar como adolescente, convencer a todos que tem a idade que diz ter. Alguns erros no vestuário e no cabelo acabam por minar as suas chances quando chega à escola, mas a questão não é a saga de Josie para conseguir escrever a matéria, e sim, a chance de enterrar de vez os traumas de seu passado, revivenciando tudo o que passou quando ela mesma tinha dezessete anos.




De frente para o passado.



Vejam bem, no ano em que o filme foi lançado, 1999, o conceito de “bullying” ainda estava sendo formado. O filme retrata um pouco o sofrimento de Josie quando era humilhada por parte de seus colegas de escola. Tal questão fica velada por conta do tom de comédia, mas na estrutura profunda percebe-se a luta interna da protagonista para se livrar de seus fantasmas. Na casa dela por exemplo, a moça tem uma coleção de almofadas que ela própria borda, e que ocupa quase que a cama inteira. Coisa parecida há no quarto que era dela na casa dos pais, só trocando as almofadas pelos ursinhos de pelúcia, provavelmente sua única companhia quando adolescente. A mania de organização, de corrigir desvios de linguagem, revelam uma pessoa que tenta a todo custo manter seus medos sob controle. Para um espectador menos atento, isso passa batido, mas um perspicaz percebe o esforço da personagem em esquecer. Jogar as lembranças num canto escuro da própria mente e se proteger do mundo de qualquer forma, mas isso cai por terra quando se vê novamente no ambiente de seu inferno pessoal.


No colégio, novamente: começo nada promissor.


Chamo a atenção ainda sobre a aula que mais aparece no filme, a de Inglês (que é o equivalente às aulas de Língua Portuguesa/Literatura nos colégios brasileiros): o professor, Sam, está promovendo, ou melhor, tentando promover um debate sobre a peça “Como Gostais” de William Shakespeare. O tema da trama do dramaturgo inglês é semelhante a outra obra sua, “Noite de Reis”, pois conta com a protagonista, Rosalinda, tendo que se disfarçar de homem a fim de sobreviver num ambiente que não lhe é favorável, assim como Josie. A chance do disfarce dá a Rosalinda a oportunidade de conhecer a si própria e agir de forma livre, sem as amarras que a sociedade de então impunha às mulheres. Claro que Josie se vê na personagem, tanto que ela escolhe se vestir de Rosalinda para o baile à fantasia do colégio; e é vestida como a personagem de Shakespeare que ela enfim se liberta de seu passado, superando seus medos, para depois arcar com as consequências: o professor Sam, que havia se apaixonado por ela, e esperou a formatura da classe para enfim se declarar, decepciona-se com a revelação de toda a verdade e se afasta da amada. Na redação do jornal, a moça corre o risco de ser demitida. Contudo, é na adversidade que Josie encontra segurança para superar novamente os obstáculos: ela escreve um artigo de página inteira sobre sua segunda experiência no Ensino Médio, chamando a atenção da população e da mídia, que a apoia para que consiga o perdão do amor de sua vida.


Josie e Sam: ela não enxerga o carinho que ele lhe dedica.


Por ser um filme de comédia, os dramas de Josie são engolidos pelas situações inusitadas em que ela acaba se envolvendo, mas se focarmos nela, e somente nela, veremos algo que já naquela época era visível: as feridas que o “bullying” deixa em suas vítimas. Por tudo o que passou, Josie não consegue seguir em frente, e o seu medo de ser ridicularizada acaba atropelando completamente sua vida, tanto pessoal quanto profissional: a palavra “loser” (perdedor[a], em inglês) chega a lhe dar náuseas, ela não consegue falar de si mesma nem para o irmão (que, diga-se de passagem, foi em parte responsável por seu sofrimento no colégio), mal consegue se comunicar com os alunos do colégio (exceto com quem lhe oferece amizade de forma sincera, como a adolescente Aldrys), aliás, ela sequer consegue se impor com seu assistente no jornal. O medo do ridículo e a ansiedade por ser aceita travam sua vontade, suas ações, tornando-a fechada, uma princesa numa torre. Contudo, na história não há príncipes num cavalo branco, com uma espada em punho para protegê-la; o “bullying” é um monstro que é preciso enfrentar com a própria força e determinação – claro que não sozinha, é necessário o apoio da família (Rob) e de amigos (Aldrys), mas no fim, só quem pode libertá-la do monstro é a própria Josie, pois querendo ou não, é ela mesma quem o alimenta, ao passar a vida fazendo de seus traumas algemas que a impede de crescer.


 
Mas, no fim, claro, tudo dá certo!


“Nunca Fui Beijada” pode ser um filme ingênuo, bobo até, mas quando prestamos mais atenção conseguimos ver algumas coisas bem comuns à comunidade escolar. No artigo, Josie diz que o colégio não mudou; os professores, o ambiente, os alunos, todos são os mesmos, só mudam os rostos. Infelizmente, o “bullying” também permanece, como uma chaga infectando corações e, pior, destruindo vidas. O filme é uma comédia romântica, mas o drama de Josie é o drama real de muitas crianças e adolescentes.

2 comentários:

  1. Filme da minha vida. Fui beijada aos 26, já formada. Os fantasmas continuam me rondando. Não tenho auto estima nem autoconfiança quando o assunto é romance...

    ResponderExcluir