Meus pais não tiveram meninos. Deus quis que eles só
tivessem duas meninas, minha irmã, Etiane, e eu. Vestidos, lacinhos, bonecas.
Mas também havia carrinho. E BOLA. Em todas as fases da minha vida, sempre
convivi com bola do tipo “dente de leite”, aquela que, apesar de fazer a
felicidade da criançada, nunca durava uma semana. Meu pai não pôde me ensinar
muita coisa – garimpeiro, vivia distante da família – e eu também era PÉSSIMA.
Sempre tropeçando, o que me valeu o apelido de “pé de gancho”, cortesia da
minha irmã. Era 1990, ano de Copa do Mundo, apesar de na época, com 7 anos, não
saber o que significava. Contudo, todo mundo em casa parecia saber. Lembro que
foi a única vez na vida que vi minha irmã num acesso de raiva, e não imaginava
o motivo; era alguma coisa contra a Argentina. Sim, vocês imaginam o que era.
O meu quase total desconhecimento do futebol mudou em
1994. Também ano de Copa, minha professora de Educação Física inventou um
trabalho sobre o esporte. Quem não entrava no time, fazia pesquisa. Não
querendo ser motivo de chacota na turma inteira devido ao meu retrospecto, devo
ter sido a única, imagino, que preferiu fazer o trabalho escrito. Santa
decisão. Conheci as regras básicas do futebol graças a uma enciclopédia, bem a
tempo do Mundial dos Estados Unidos. Em casa, estava todo mundo por lá: meu pai
já não era mais garimpeiro. Ansiedade definia o clima. Meus pais não haviam
gostado da escalação da Seleção, estavam especialmente descontentes com a
presença de Dunga, que descobri ser egresso do time de 1990, aquela; minha irmã
vivia afirmando que não queria jogo com pênaltis, enquanto que eu... Revivia a
fase dos porquês. Meu pai, ex-jogador do América de Itaituba/PA, teve uma
paciência enorme para me explicar qual era a diferença entre tiro livre e tiro
de meta. Enquanto isso, o Brasil, desacreditado no início, começava a inspirar
confiança. Romário e Bebeto se tornaram uma dupla mágica. Jorginho, Mazinho,
Ricardo Rocha, Branco... A Seleção conquistava o favoritismo numa terra onde o
futebol não tinha tradição. Os americanos, que diziam que futebol de verdade era
aquele em que se faziam muitos pontos – coitados... –, viam espantados a
própria Seleção QUE NÃO CONHECIAM passar para a segunda fase. Enfrentando o
Brasil em pleno 4 de julho, dia da Independência americana, a torcida exibia
nas entrevistas que não sabia com quem estavam lidando. Deu no que deu. Lição
daquele dia: descobri porque a mãe mais sofredora do mundo é a do juiz de
futebol. E que cotovelada dá cartão vermelho, e que carrinho não é brinquedo.
JOGO INESQUECÍVEL: Brasil x Holanda. Toda vez que me
lembro, a primeira palavra que me vem à cabeça é: CREDO! Naquela hora entendi o
acesso de raiva que minha irmã teve quatro anos antes. Ela quase teve um
derrame quando a Holanda fez os dois gols que empataram a partida. Quando
Branco sofreu a falta, minha mãe, com os nervos em frangalhos, disse: “mais um
pouco pra frente e seria pênalti!”, meu pai calado, e eu... Nem piscava.
Começava ali um ritual que se repetiria nas Copas posteriores – cruzar os
dedos, os braços, as pernas. Meu corpo parecia uma trança! Quando Branco
converteu, eu tinha certeza: nunca mais deixaria de acompanhar futebol.
Passamos pela Suécia e finalmente... A Itália. Todo mundo em casa em coro no
“ESSA NÃO!”. Itália é a favorita, disse papai, isso significa que ela tem mais
chance de ser vencedora. Hum, disse eu. Então o Brasil vai perder? E minha mãe
respondeu com uma frase que até hoje repito como mantra: JOGO É JOGO. E foi.
Zero a zero no tempo normal. Brasil não fazia nem levava gol, Itália idem.
Prorrogação. Minha irmã começava a chorar, dizendo que o Brasil iria perder que
nem em 1990, enquanto que minha mãe a mandava calar a boca e parar de bobagem,
enquanto que meu pai pedia POR FAVOR para pararem de falar. Com minha irmã
chorando, eu comecei a chorar também, já nem sentia mais meus dedos, braços e
pernas, cruzadas com toda a força que tinha aos meus dez anos. Pênaltis.
Aaaaah, que coisa! Minha primeira Copa e o Brasil chega à final num jogo com
pênaltis! Haja coração e oração, meu amigo. E com aquele chute mandado pra lua
por Baggio, terminava meu curso intensivo de futebol e começava a minha paixão
pelo esporte. Família unida ama futebol unida.
Vinte anos se passaram, e eu aqui me encontro, assistindo
a Copa do Mundo no Brasil. Devo ser uma das poucas mulheres que não é
jornalista esportiva que sabe o que é um impedimento, que a Espanha joga no
4-3-2-1, como é o drible da caneta, quem inventou a bicicleta e quem era o cara
de pernas tortas que chamava todo mundo de João. Sou aquele tipo de torcedor
que não torce calado, que reconhece uma falta, e que chama o pai para assistir
aos jogos com o objetivo de discutir depois e sempre corre atrás de uma tabela
para preencher. Minha mãe, em espírito, acompanha também, eu sei. Ela não está
fisicamente, mas sua presença é sentida e posso até ouvi-la reclamar do Hulk.
Não tenho irmãos, mas eles não fazem falta. Tanto que um dia questionei meu pai
se ele nunca sentiu falta de um filho, para ensinar a jogar futebol. Sabem o
que ele me respondeu?
– Para quê? Deus foi generoso comigo. Não tenho do que
reclamar.
Obrigada, 1994. Agora vamos. Rumo ao Hexa. E dane-se o
resto.
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